Em 1.973/74 trabalhei no Edifício Joelma, que era a sede do Banco Crefisul de Investimento.
No dia 1º de fevereiro de 1974, aconteceu o incêndio.
No dia anterior, um cliente do Crefisul, Domingos Agnello, diretor da Máquinas Piratininga, que ficava na Mooca, pediu-me que passasse por lá pela manhã, que ele queria conversar. Atendi o pedido e fui direto até a Mooca. Tivemos uma reunião rápida e em seguida segui para o Crefisul. No trajeto, escutei pelo rádio que o edifício Joelma estava em chamas.
Larguei o carro onde foi possível, e fui a pé até a praça das Bandeiras, que ficava ao lado do Joelma.
Encontrei vários colegas de trabalho e as cenas que vi foram indescritíveis. Não vou falar sobre isso, todos sabem o que ocorreu.
O que quero comentar é que esses fatos aconteceram há 50 anos.
Não sei o porquê, mas datas terminadas em zero, impactam mais nossos pensamentos.
É como se os acontecimentos retornassem mais fortes com datas terminadas em múltiplos de dez.
Foi uma época difícil. Três meses e meio antes do incêndio, fui preso no próprio Crefisul logo após o almoço, por agentes do Doi-Codi, que se fizeram passar por fiscais do Imposto de Renda. Eu deveria acompanhá-los para esclarecimentos na minha declaração de rendimentos.
Em nenhum momento acreditei em uma palavra. Percebi que algo complicado estava para acontecer comigo.
Os agentes do Doi-Codi estavam na área de Recursos Humanos, que ficava três andares acima de onde eu trabalhava. Ao saber que deveria acompanhá-los, falei que ia pegar meu paletó e desci as escadas correndo e cheguei antes deles na minha sala de trabalho.
Muito nervoso, falei para a Marlene, a secretária do departamento:
- Ligue para a Beatriz. Fale para ela ligar para cá daqui duas horas. Se eu não estiver aqui é para ela se preocupar.
Recado completamente enigmático para a Marlene, que me vendo muito nervoso, perguntou:
- O nenê nasceu?!
- Não, o nenê não nasceu! Fale para ela exatamente o que estou lhe dizendo.
E repeti o recado.
Ela de fato ligou para a Beatriz, que começou a telefonar para advogados, amigos, parentes para saber o que estava ocorrendo.
Outro fato curioso é que, o pessoal de Recursos Humanos que me entregara aos agentes do Doi-Codi, examinando a minha ficha pessoal, viu que eu era casado com Beatriz Ferreira Cintra, nome de solteira.
Foram perguntar ao Luiz Gonzaga Ferreira Cintra (Lico) que também trabalhava no Crefisul, se Beatriz era parente dele.
- Minha prima irmã.
- Pois o marido dela, Michel Labaki, acabou de ser preso.
Lico então começou a tomar as providências possíveis.
Uma delas foi ir até minha casa, à noite, para conversar com a Beatriz.
Agora faço um parêntesis. Fui preso logo depois do almoço e fui levado para o Doi-Codi e interrogado a tarde toda.
O motivo do interrogatório era para eu contar onde estava Ivan Valente, colega da Escola de Engenharia Mauá, hoje deputado Federal, mas na época clandestino no Rio de Janeiro.
No princípio da noite, o interrogatório foi interrompido, e me levaram para minha casa, para revistar se não havia nenhum material político.
Não havia ninguém em casa, uma casa arrumadinha, com enxoval de nenê, que iria nascer dois meses depois.
Enquanto a casa era revistada, chega o Lico com a Helena. Como se fosse uma visita casual.
Ele era muito espirituoso e calmo. Viu os agentes do Doi-Codi e fingiu tratar-se de amigos meus.
- Boa noite. Ainda não os conheço. Meu nome é Luiz Gonzaga.
E todos se sentaram fazendo de conta que era uma visita. A conversa mais absurda do mundo.
Lico foi embora alguns minutos depois e conseguiu falar com a Beatriz, que estava na casa de meu irmão, tentando tomar alguma providência.
Ela e meu irmão foram para minha casa a tempo de verem os agentes do Doi-Codi ainda revistando a casa.
Fui levado de volta para o Doi-Codi, na época também conhecido por Operação Bandeirantes. Fui solto às 14 h do dia seguinte. Fiquei apenas 24 horas ali. Foram horas “inesquecíveis”!
Dois meses depois nasceu a Marilia, nossa primeira filha. E quarenta e cinco dias depois ocorreu o incêndio.
Morreram 188 pessoas, entre elas a Marlene, secretária do departamento e o Lico.
Uma tragédia.
Hoje, quando há o falecimento de alguém, as pessoas ou vão no velório e enterro ou vão na Missa de 7º dia.
Naquela época, além disso, se faziam visitas de pêsames. Minha mãe e meu pai quiseram visitar o sr. Arthur e a dona Mirtes, pai e mãe do Lico.
Alguns dias depois levei meus pais para essa visita. Eles moravam perto do aeroporto de Congonhas, numa casa com um jardim na frente.
Apertamos a campainha e o sr. Arthur veio abrir o portão e nos receber. Entramos e fomos até a casa, que tinha uma varanda na frente.
Encontramos a dona Mirtes, regando as plantas na varanda!!!
Aquela cena me impactou profundamente.
Perder um filho deve ser uma dor imensa. Perder um filho naquelas circunstâncias do incêndio do Joelma, deve ser a chamada dor definitiva!
No entanto, dona Mirtes estava regando as plantas, como a dizer:
- A vida continua!
Este pequeno texto é uma homenagem a quem faleceu no Joelma, especialmente ao Lico e a Marlene. E também ao sr Domingos Agnello que mesmo em o saber, salvou minha vida ao me chamar para aquela reunião na Mooca.
03/02/2024
Uma resposta