Manifesto Petista

Um espaço para contribuir com o PT no debate sobre temas da conjuntura.

Escudo para chacina

Para cada morte de um policial militarizado, vinte civis executados. Assim chegou a notícia nas quebradas da Baixada Santista prenunciando a chacina em andamento no Litoral de SP iniciada pelo Guarujá. Dezesseis já morreram. Sob esse clima, morros, favelas e palafitas – o território em guerra permanente do Brasil –, segue seu cotidiano bélico. Muitos lembraram a semelhança entre a política de vingança instituída atualmente pelas tropas de elite militarizadas e as respostas dos nazis à resistência antifascista nos territórios por eles ocupados. Para cada nazista, dez, cinquenta, cem partisans fuzilados. A proporcionalidade depende do humor do oficial do dia. Muitos rejeitam a comparação afirmando tratar-se de combate ao crime organizado. Vem-nos à cabeça os versos de Chico Science:

Banditismo por pura maldade

Banditismo por necessidade

Banditismo por uma questão de classe

Os que defendem o extermínio são os mesmos que produzem a miséria de onde sai a degeneração social da guerra entre tráfico e milícia que os beneficia na concentração escandalosa de renda tão característica da nossa segregação social.

O que está acontecendo no Litoral Paulista de diferente dos outros territórios pretos pobres e periféricos do Brasil? Nada! Exatamente porque o território preto pobre e periférico em todo o país é a Antirrepública. O avesso da República. Sua dimensão sombria. Nele, a Constituição com seu artigo 5º não passa de ficção. Inviolabilidade de domicílio, mandado judicial e outras filigranas jurídicas não se aplicam. São ficção. Viram piada. Servem apenas para alimentar a ira de classe. Ninguém é igual na lei do Brasil misógino, racista e fascistizado. É uma veleidade supor equiparação com essa gente nascida para o extermínio.

O exercício aqui é o seguinte: pegue o artigo 5º da Constituição e inverta sua redação, da cabeça ao último inciso. Aí se torna compreensível a lei do gueto, segundo o sistema de segurança pública vigente. Vá até os demais artigos que tratam dos direitos sociais e faça o rescaldo do que sobrou do Golpe de 2016, aquele que extinguiu direitos e solapou a organização político-sindical em nome da modernidade radicalizando a miséria nos últimos seis anos. Essa constituição de um povo sem direitos, sem cidadania (a Constituição-Não-Cidadã) é a que rege o território em guerra de ponta a ponta. Vila Zilda, Morrinhos, Conceiçãozinha são parte do território-bacurau permanentemente posto para fora do mapa. São estados de exceção encravados no balneário do Guarujá. Essa é a ordem dos fatos que a extrema-direita luta por manter. É aqui que se entende o princípio do negociado sobre o legislado feito para viger onde não se reconhece qualquer dignidade para explorado negociar nada.

São Paulo reafirmou essa ordem pelo voto colocando no comando do Estado um governador que se apressou em celebrar a necro-cotação um para vinte. Alguém que elimina livros nas escolas públicas, acaba com o saneamento básico no território periferizado, se opõe frontalmente à extinção do programa de militarização da educação maquinado na gestão federal anterior, fará de seu programa de governo exatamente a indiferença e o ódio aos movimentos sociais, defensorias, ouvidorias e responderá as questões sociais incrementando mais e mais escudos para chacinas. Aqui se apresenta um dos pontos mais sensíveis de colisão entre a ordem deformada pelo golpismo e a implementação da ordem civilizada e solidária pela qual lutamos no atual contexto político. As chacinas são a inexistência de regras ou, se preferirmos, a instituição das próprias regras de insegurança pública na periferia. O clamor dos movimentos sociais nesses territórios é simples e direto: “Parem de nos matar!”. Aqui se apresenta a mesma urgência da desintrusão do garimpo assassino das terras indígenas, da prisão dos golpistas do oito de janeiro, da inconstitucionalidade do feminicídio da defesa da honra. Parem de nos matar!

O Movimento Negro há muito reivindica a vida diante da pilha de cadáveres produzidos em escala industrial no genocídio da juventude preta diante do terrorismo racista das forças de segurança. Defender a vida deve ser o princípio de toda a gestão radicalmente comprometida com o a defesa da dignidade de nosso povo onde essa atitude se mostra mais urgente. Não há negociação possível com a necropolítica. Aqui a situação é de conflito vinculado à radicalidade inerente ao direito à vida. “Parem de nos matar!” é a exigência a ser atendida para estabelecer qualquer vínculo de comunicação institucional com credibilidade para quem vive na zona de guerra, na mira do fuzil, a coices de coturno. A única resposta possível para quem é condenado a sobreviver tropeçando em cadáveres na porta de casa é esta: Parem!

Durante o ato realizado recentemente na Praça 14 Bis, no distrito de Vicente de Carvalho, no Guarujá, as falas protocolares foram atropeladas por um grupo de moradores basicamente expressando essa urgência. Foi simbólico que não aguardassem o fim da lista de oradores para erguerem a voz. Imediatamente todos foram para o lado onde a pequena insurgência aconteceu.

Na manifestação de rua a urgência das providências se apresenta diante da chacina e é imediatamente compreendida. Os protocolos e as instituições tal como organizadas hoje são incapazes de responder o que as vítimas exigem. Não param de matar. Tapam os ouvidos. Podemos equiparar a situação na periferia com a necrose do sistema militar golpista. De certa forma, é a mesma necrose. Não é possível conciliar democracia e interpretação golpista do artigo 142 da Constituição que atribui às Forças Armadas foros de poder moderador. Estamos assistindo todos os dias a revelação do que foi a escalada da corrupção deflagrada pelo governo militarizado resultante do fascismo anabolizado em nome do combate à corrupção. O mesmo se aplica para um governo promotor de chacinas em nome do combate ao crime. São dois lados da mesma moeda: o fascismo se apresentando como solução para deter a violência que ele próprio produz. É o seu negócio.

A Nota de Repúdio contra a Chacina subscrita por mais de duzentas entidades entre coletivos e partidos, apresenta reivindicações em seis pontos, entre eles, a imediata retirada da ROTA da cidade do Guarujá; publicidade dos termos da “Operação Escudo”; liberação e publicidade dos procedimentos instaurados sobre as mortes civis e do policial executado. Também apela para que o governo federal atue concretamente contra a mortandade. Ainda que existam complexidades próprias do mundo institucional da política da morte, essas respostas devem ser apresentadas, iniciando pela urgente e resoluta censura ao governador que se dirigiu à sociedade para elogiar chacina e dizer que não vai parar de matar. A luta pelo retorno à ordem democrática tão sabotada e violentada nos últimos tempos pelas forças políticas que pariram personagens como o atual governador do Estado de São Paulo exige pronta rejeição àqueles que, como ele, operam a política da morte. Nos territórios em guerra, por trás dos escudos, vive a maioria cuja reivindicação básica neste momento é viver.

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