Manifesto Petista

Um espaço para contribuir com o PT no debate sobre temas da conjuntura.

A estratégia Boulos: uma réplica?

Sou um leitor mais ou menos assíduo dos textos do companheiro Valério Arcary, desde aqueles textos que ele escreveu quando era da esquerda do PT, passando pelos escritos durante os mais de vinte anos em que Valério dirigiu o PSTU e, também, os textos que ele vem escrevendo enquanto integrante do PSOL e de seu campo majoritário.

Leio os textos de Valério porque, na melhor das hipóteses, aprendo algo. Na pior, me divirto tentando. Este último é o caso da leitura do texto intitulado “A estratégia Boulos”, disponível no endereço abaixo:
https://esquerdaonline.com.br/2023/11/01/a-estrategia-boulos/

O divertimento, nesse caso específico, está em assistir os malabarismos que Valério faz para apresentar, como suposta alternativa de esquerda ao PT, uma “estratégia” que mimetiza muitas das atitudes e características que Valério sempre criticou no PT.

O divertimento vem acompanhado de saudades daquela época em que os textos de Valério debatiam a estratégia socialista, a estratégia democrática e popular, a estratégia etapista, a via chilena para o socialismo e quetais. 

Hoje, sinal dos tempos, o que Valério nos apresenta é a “estratégia Boulos”. Que, na minha opinião, tem os defeitos, mas não tem as qualidades daquilo que o PT fez, principalmente a partir de 1995.

1/

O texto de Valério tem 9 pontos. No primeiro, ele apresenta o PT segundo Valério

Começa com um grande elogio (“um dos maiores partidos de esquerda do mundo”), para depois resumir as coisas assim: “a esquerda brasileira é liderada pelo PT, o PT é dirigido pela CNB (Construindo um novo Brasil), e a CNB é uma articulação de líderes, parlamentares e grupos que respondem à autoridade de Lula”

Um reducionismo que poderia ter saído da lavra de algum maximalista da própria CNB.

Mas o mais importante é aquilo que entendo como a “moral da história segundo Valério”, a saber: a influência do PT “decorre de muitos fatores, mas o mais importante é que as expectativas reformistas ainda prevalecem na maioria dos trabalhadores”.

Esta conclusão de Valério é, antes que nada, um pouco óbvia: são raríssimos os momentos em que prevalecem, na maioria da classe trabalhadora de um país determinado, expectativas revolucionárias.

Além de um pouco óbvia, a conclusão de Valério é também um pouco otimista: afinal, somando as abstenções, os votos em branco e nulos e os votos no cavernícola, a maioria da classe trabalhadora brasileira não votou no PT em 2022. Quem votou no PT foi a maioria dos que têm consciência de classe.

Dito de outra forma: o PT está à esquerda da maioria da classe trabalhadora brasileira e sua influência não é apenas um reflexo mecânico do estado de ânimo da classe trabalhadora.

2/

Depois de ter reduzido o PT ao lulismo, Valério passa a tratar do que, na opinião dele, estaria “à esquerda do lulismo”.

Segundo Valério, existiria uma “esquerda anticapitalista”, composto por organizações que defendem “a necessidade da revolução”, mas que no plano tático estaria dividida em três campos: a esquerda do PT, o campo majoritário do PSOL e a oposição de esquerda.

Antes de entrar nos detalhes, três questionamentos acerca do critério.

Em primeiro lugar, não é politicamente razoável usar como régua, para catalogar a esquerda em campos, a defesa retórica do anticapitalismo e/ou da revolução.

Para simplificar, dou um exemplo: as diferenças entre a esquerda do PT e o PSTU não são “táticas”. 

Podem ter sido em algum momento, podem até voltar a ser, mas desde 2016 não são diferenças “táticas”.  O PSTU foi aliado objetivo da direita golpista, além de ter uma política internacional que vai ao encontro, em muitos casos, da política defendida por setores do imperialismo.

Em segundo lugar, onde ficam, na análise apresentada por Valério, os grupos que integram a minoria do PSOL? Onde ficam outras tendências que participam do atual Diretório Nacional do Partido e não são nem ao menos citadas? E onde fica o PCdoB, que noutro ponto de seu texto Valério afirma ter expressão em setores de vanguarda “incomparavelmente maior” que a de outros partidos?

Em terceiro lugar e mais importante: será correto o destaque dado, na “tática” das tendências e partidos citados, ao tema da candidatura que supostamente será defendida em 2026?

Este último me parece o ponto mais revelador da análise de Valério acerca da esquerda brasileira: o ponto de vista escolhido é prioritariamente eleitoral.

A saber: segundo Valério, a DS, a AE e OT “apostam, prioritariamente na reeleição de Lula que, entretanto, terá 81 anos em 2026”; as “correntes que constituem o bloco majoritário do Psol” “apostam em uma reorganização que tem Boulos como referência pública”; as forças da “oposição de esquerda” apostam “nas suas autoconstruções, sem uma liderança pública comum”.

Detalhe: “o terceiro campo é, qualitativamente, tão menor que os outros dois, que já está à margem da disputa que virá”. Ou seja: a disputa que virá será eleitoral. Uma certeza que, depois de 2016 e depois do 8 de janeiro de 2023, precisaria ser afirmada cum grano salis.

Feitas estas ressalvas aos critérios, um comentário sobre os detalhes: a “aposta” da AE, do ponto de vista tático, é na luta de massas. Se isto não ocorrer, o desempenho do governo e o resultado das próximas eleições tendem a ser negativos. E essa tendência negativa condicionaria a discussão sobre a candidatura do PT em 2026. Sem falar em cenários piores, que poderiam decorrer de uma deterioração no quadro econômico e social. Portanto, o resumo feito por Valério acerca de nossa tática elimina do horizonte aquilo que, ao menos para nós da AE, é o principal: a luta de massas.

3/

O terceiro ponto do texto de Valério tem como objetivo apresentar Boulos como “o cara”. A maneira como ele tenta fazer isso é tão forçada, que chega a ser engraçada.

O ponto de partida é a frase: “As esperanças reformistas não morrem sozinhas”. Mais correto seria dizer: raramente morrem. Afinal, são raros os momentos em que, em algum país do mundo, a classe trabalhadora aderiu a esperanças revolucionárias.

A segunda afirmação chave feita por Valério, no ponto 3 de seu texto, é a seguinte: “Somente quando foram esgotadas todas as expectativas em soluções negociadas, o desafio da ruptura pode conquistar maioria entre os explorados”. Logo, “a luta revolucionária exige uma inesgotável paciência histórica”.

Alguém poderia perguntar: se isto é verdade, por qual motivo não se pode exercer esta “paciência histórica” dentro do PT, junto com a maioria dos trabalhadores com consciência de classe?

Valério, obviamente, não se faz esta pergunta, ao menos não neste texto. Ao invés disso, ele afirma o seguinte: “Mas o caminho para sair da marginalidade não é possível sem uma acumulação prévia que não se improvisa no calor da hora”.

Obviamente está faltando algo no raciocínio, que imagino seja o seguinte: enquanto as massas estão dominadas pelas expectativas reformistas, enquanto a situação revolucionária não aparece, os revolucionários estariam na “marginalidade”.

A palavra “marginalidade” é forte, bem mais forte que “minoria”. Obviamente Valério utiliza a palavra “marginalidade” no sentido de “estar nas margens”. O curioso é que esta imagem distorce o que efetivamente ocorreu, nos casos em que a revolução efetivamente ocorreu. 

Por exemplo: os bolcheviques, o PCCh e o M26 de julho começaram minoritários, mas é forçado dizer que estivessem nas “margens” do movimento feito pela classe trabalhadora russa, chinesa e cubana, respectivamente.

Na verdade, o termo “marginalidade” poderia se aplicar, com mais precisão, às forças autoproclamadas revolucionárias, naqueles países em que não houve revolução. 

Mas se é assim, o que Valério está apresentando é uma hipótese, que na minha interpretação tem por detrás um pressuposto oculto: o pressuposto de que os revolucionários só podem estar nas margens do movimento principal feito pela parcela da classe com consciência de classe. 

Dito de outra forma, o pressuposto é que os revolucionários não poderiam estar, por exemplo, no PT, onde estariam em minoria, mas “dentro das margens” do movimento principal construído pela vanguarda da classe.

Por qual motivo seria impossível, para quem é revolucionário, estar no PT? 

O único argumento razoável, embora errado, na minha opinião, é que seria muito difícil transformar minoria em maioria. 

Mas isto por acaso seria melhor ou mais fácil do que estar e/ou sair da “marginalidade”?

Segundo Valério, não seria possível “sair da marginalidade” sem “uma acumulação prévia que não se improvisa no calor da hora”.

Nesse ponto, a argumentação de Valério dá outra pirueta muito engraçada.

Afinal, segundo tudo o que veio se dizendo até agora, o “calor da hora” seria aquele momento em que a luta de classes faria a classe trabalhadora perder suas ilusões reformistas.

E onde foi que isso ocorreu? Nos poucos casos em que houve revoluções vitoriosas, só um caso se parece com este descrito por Valério: o da revolução russa de 1917, que de fevereiro até outubro viveu uma crescente radicalização, com os bolcheviques passando de minoria para a maioria. Embora seja mais exato dizer assim: em fevereiro de 1917, os trabalhadores com consciência de classe apoiavam, majoritariamente, a direita da socialdemocracia e a direita do socialismo revolucionário. E, em outubro de 1917, os trabalhadores com consciência de classe apoiavam, majoritariamente, a esquerda da socialdemocracia e a esquerda do socialismo revolucionário. 

Portanto, nem os bolcheviques, nem os SRs de esquerda, estavam na “marginalidade”. Eram minoria, o que é outra coisa.

O mais importante, no caso da Revolução Russa, é que setores da classe trabalhadora abandonaram a direita da esquerda e penderam para a esquerda da esquerda. 

No caso brasileiro, que Valério citará em seguida no seu texto, o que ocorreu foi outra coisa: parcelas expressivas da classe trabalhadora se afastaram da esquerda e se aproximaram da direita.  

Nas palavras de Valério: “A experiência dos governos de coalizão liderados pelo PT foi interrompida pelo golpe institucional em 2016. Esta é a chave para a compreensão da resiliência do lulismo”. 

Digamos que tenha sido isso o que ocorreu. Nesse caso, como deveria agir a esquerda que se autoproclama revolucionária? Ficar às margens??

Como sabemos, naquele contexto, a partir de 2016, o setor do PSTU liderado por Valério, um setor importante do PSOL e o grupo liderado por Boulos decidiram sair da “marginalidade”.

Mas atenção: a aproximação com o PT, a partir de 2016, é uma coisa; outra coisa é a hipótese sobre a qual Valério falava antes.

A hipótese era: no momento em que a situação revolucionária se aproxima, as massas abandonam as ilusões reformistas e se aproximam dos revolucionários, mas para isso os revolucionários teriam que fazer uma acumulação prévia de forças.

A realidade de 2016 era: frente a uma ofensiva reacionária, em que parte das massas aderia a posições de direita, os autoproclamados revolucionários se aproximaram dos supostamente reformistas.

Valério, na argumentação desenvolvida no texto, não distingue uma coisa da outra. E, portanto, confunde “acumulação de forças em tempos de paz e defensiva” com outra coisa totalmente diferente.

É verdade que ele alerta para a “perigosa ilusão de ótica” dos que confundem a presença de uma “liderança de revolucionários nos seus sindicatos”, ou em mandatos parlamentares, com a adesão das massas a posições revolucionárias. 

Ele chega até a dizer que “o apoio a Lula tem dimensão programática, mas o voto em revolucionários para a presidência de um sindicato ou para parlamentares é pessoal”, o que me parece um certo exagero.

Mas de repente, toda esta cautela some: “há uma exceção, e ela foi uma façanha enorme. Na cidade de São Paulo, Boulos superou a candidatura do PT em 2020. Por isso, sua candidatura em 2024 é muito maior que uma tática eleitoral. Boulos concentra uma aposta estratégica”.

Boulos, a exceção!!!!!

Repito: segundo Valério, o fato de Boulos ter superado a candidatura do PT no primeiro turno das eleições 2020 faria de sua candidatura em 2024 algo maior do que uma tática eleitoral. Boulos 2024 concentra, diz Valério, uma aposta estratégica.

[Antes de seguir, um comentário a margem: é com base neste tipo de raciocínio que Quaquá e outros questionam o apoio do PT a Boulos. Resumidamente, em minhas palavras e tradução livre, o PT estaria colocando azeitona em empada alheia.]

4/  

No ponto 4, Valério afirma que existiriam “três estratégias para a etapa pós-Lula”. 

Como eu disse antes, saudades do tempo em que debater “estratégia” significava debater o caminho da classe trabalhadora para o poder. 

E saudades do tempo em que a esquerda lembrava que ser governo não é ser poder; que disputar eleições e governar é parte importante da disputa pelo poder, mas existe muito mais coisa envolvida, sem o que ganhar eleições será totalmente insuficiente. 

Mas deixemos estes resmungos vintage de lado e vamos enfrentar o debate sobre aquilo que Valério afirma ser “um daqueles momentos raros em que uma questão central será incontornável: o que será da esquerda brasileira depois de Lula?”

Valério, a bem da verdade, embora seja reducionista na apresentação da questão, busca ser amplo na apresentação da problemática: “o fator chave deste processo será a luta de classes”. Mas quando vai ao grão, Valério apresenta as coisas de maneira assaz curiosa.

Diz que a “a aposta da esquerda do PT é defensiva” (…) “disputando espaço interno, e apoiando Lula até o fim”. 

Pergunta: a direita, perdão, o campo majoritário do PSOL não fará exatamente o mesmo? Ou o campo majoritário do PSOL pretende romper com o governo e lançar candidatura contra Lula em 2026?

Dito de outra forma: Valério apresenta como dilema da esquerda petista o que na verdade não é, ou pelo menos não deveria ser, um dilema para ninguém da esquerda que apoiou Lula no primeiro turno de 2022. 

Não existe, ou não deveria existir, a alternativa “não apoiar Lula até o fim” do seu mandato.

Valério, em seguida, afirma que “ninguém sabe se Lula poderá ou não concorrer em 2026”. 

O termo “poderá”, assim como a referência anterior aos 81 anos, trata a questão por um viés errado. 

O problema central não é a saúde biológica de Lula, o problema central é a saúde política do governo Lula.

Se o governo estiver bem, haverá duas alternativas: ou uma quarta candidatura de Lula ou lançarmos outro nome (como foi com Dilma em 2010). 

Se o governo estiver mal, dificilmente Lula será candidato, não por razões biológicas, mas por razões políticas. 

Acontece que se o governo não estiver bem, especialmente se ele estiver mal por conta da política econômica, uma eventual candidatura Haddad estará longe de ser óbvia.

O problema principal no raciocínio de Valério não está, entretanto, nos “detalhes” acima pontuados. 

O problema principal é que ele mistura, sem mediações, duas variáveis que – embora combinadas – são diferentes. 

Uma variável é a tática do PT nas eleições de 2026 e 2030 (supondo, é claro, que nada abale o sacrossanto calendário eleitoral). 

Outra variável é a correlação de forças no petismo. 

Valério passa a impressão de que uma coisa é igual a outra, como se o sucessor eleitoral de Lula fosse, também, seu sucessor em termos de influência dentro do PT.

Adaptando aqui o resumo feito por ele no início, é como se ele nos dissesse o seguinte: “a esquerda brasileira é liderada pelo PT, o PT é dirigido pela CNB (Construindo um novo Brasil), e a CNB é uma articulação de líderes, parlamentares e grupos que respondem à autoridade do sucessor de Lula”. 

Pois bem: mesmo que o resumo original fosse verdadeiro, e não é, esta segunda versão não é verdadeira. O sucessor eleitoral de Lula, seja quem e quando for, não terá a autoridade que Lula tem.

Evidente que a disputa sobre quem será o candidato do PT em 2026 e 2030 é um fator importante. 

Mas, a depender de como estiver o país em 2026, a candidatura de Haddad pode estar tão garantida quanto o déficit zero. 

Neste cenário, de um país e um governo em dificuldades, o problema principal não serão as supostas prévias. 

Sem falar que, a preços de hoje, os concorrentes de Haddad, dentro do Partido, não estão na esquerda petista. 

Seja como for, no cenário de um governo e um país em dificuldades, o problema principal será o risco da extrema direita ou da direita tradicional recuperarem o governo. 

Situação em que a esquerda pode se unificar, como aconteceu em 2018.

Enfim, os hipotéticos cenários de 2026 e 2030 não são suficientes para responder à questão que incomoda Valério: o futuro da esquerda. 

Quero dizer: não respondem, na minha opinião. 

Pois na opinião de Valério, no caso que ele considera mais provável, a saber, “uma candidatura Haddad com perfil e programa alinhado às posições mais moderadas no PT”, então nesse caso “uma possível reorganização à esquerda dependerá, essencialmente, de uma disputa exterior ao PT, não interna”.

E, claro, “quem se posiciona melhor nessa direção é o PSol, e a liderança de Boulos concentra esta esperança, mesmo se não vencer as eleições em São Paulo em 2024. Se, eventualmente, vencer, tudo se acelera. Já os partidos à esquerda do PSol são grupos de propaganda resignados, aparentemente, a um papel de eterna oposição testemunhal”.

Ou seja: a “reorganização da esquerda” brasileira, no entender de Valério, passa pelas eleições. Notem que nesse raciocínio há um não dito: o de que Boulos será candidato presidencial em 2026 ou em 2030, a depender de quem o PT lance. 

Ou seja: como já apontamos, nesta questão pontual, o que Valério sugere reforça algo que – quem diria – Quaquá e outros têm utilizado para questionar o apoio do PT a Boulos nas eleições de 2024.

E há uma outra questão não dita: a de que Boulos faria, em 2026 ou 2030, o mesmo que teria ocorrido em 2020 na eleição municipal de São Paulo. 

Ou seja: disputaria no primeiro turno e iria para o segundo turno, recebendo então o apoio e o legado petista, não apenas como candidato eventual, mas como sucessor na liderança da esquerda brasileira.

Finalmente, cabe citar a questão principal: supondo que tudo ocorra conforme este roteiro detalhado, a resultante seria uma esquerda melhor, sem os defeitos e com todas as qualidades do PT? 

Ou por este caminho teríamos, digamos, algo parecido com a frustração causada por certos partidos europeus da nova esquerda, que prometeram grandes novidades, mas terminaram entregando imensas frustrações?

5/

Valério, colega de profissão, abre o ponto 5 de seu texto perguntando “o que a história nos ensina” a respeito destas sucessões.

Segundo Valério, “a última vez que se colocou a questão foi há 45 anos atrás”, entre 1978 e 1980. Naquele momento, segundo ele, havia os que defendiam “até o fim” a presença da esquerda dentro do MDB, “sob a liderança dos liberais”; “os que imaginavam que a crise da ditadura abriria as condições para que uma organização revolucionária conquistasse influência de massas”; e “os que compreenderam a necessidade do PT como uma mediação para disputar a liderança das massas com o MDB e Brizola contra a ditadura”.

A descrição de Valério acerca daquele momento me parece incorreta, principalmente por ser incompleta. 

Como ele mesmo lembra, havia um “quarto elemento”: Brizola e o populismo de esquerda, contra o qual o PT travou, ao longo da década de 1980 e especialmente nas eleições de 1989, uma grande batalha que definiu que ocuparíamos o lugar que, entre 1945 e 1964, fora ocupado – de forma desigual e combinada – pelo Partido Comunista e pelo PTB.

Mas Valério está certo ao apontar que o elemento central, seja em 1980, seja em 1989, era o fato do PT representar a vanguarda da classe trabalhadora, que tinha como sua ponta de lança, naquele momento, os metalúrgicos do ABC.

O ciclo histórico do PT pode se encerrar numa eleição? Vamos supor que isso seja possível. Mas daí não decorre que o ciclo histórico de uma esquerda alternativa vá surgir num processo eleitoral. O PT pode ser superado eleitoralmente. Mas uma nova esquerda não surgirá de um processo eleitoral.

Valério provavelmente sabe disso. Mas ele parece focado demais na “oportunidade” que será aberta, mais cedo ou mais tarde, pela implacável biologia: “a questão é saber se o ciclo histórico do PT se esgotará ou não numa etapa pós-lulista”.

Esse foco o leva a concentrar-se na substituição do personagem central, como se isso fosse capaz de definir os rumos de toda a temporada.

6/

O foco no personagem o leva a fazer a seguinte pergunta: “Por que a estratégia Lula foi vitoriosa?”

A expressão “estratégia Lula” – que serve para naturalizar a expressão “estratégia Boulos” – passa a falsa impressão de que o PT se organizou, desde antes de existir, desde 1978, com o objetivo de fazer de Lula presidente da República.

Mesmo depois de 1989, é um erro resumir a estratégia do PT nesses termos anacrônicos. 

Mas, claro, a escolha destas palavras – “estratégia Lula” – torna tudo mais fácil para Valério. Afinal, é mais fácil imaginar uma “estratégia Boulos” do que construir, nos dias de hoje, os processos que tornaram possível o PT ser o que é e fizeram de Lula o que ele é.

[Outro comentário a margem: talvez também na linha de tornar mais fáceis as coisas, Valério se pergunta “por que o PT substituiu o PCB?” Na verdade, o PT não substituiu o PCB. O PCB já havia se tornado, sozinho, uma sombra do que fora. O que o PT fez foi ocupar, na política brasileira, um papel similar ao papel ocupado, no passado, pelo trabalhismo e pelo comunismo. Algo muito mais amplo do que “substituir o PCB”.]

Evidentemente, Valério tem noção de quão complexo foi o processo que fez do PT o que somos hoje. Seu texto cita vários elementos que comprovam isso. Entre os quais “a presença, compromisso e capacidade de Lula, porque o seu papel pessoal foi insubstituível”.

Não só “foi”, como continuará sendo. Nos qualidades e nos defeitos (que Valério, cautelosamente, não cita, talvez para não ser obrigado a citar os defeitos do ungido por ele mesmo), Lula é insubstituível. Não porque seja um super-homem, mas apenas porque os processos históricos que o produziram, não são repetíveis. Donde deduzo que, na melhor das hipóteses, é inócuo, pura perda de tempo, achar que outra pessoa – por mais que se esforce em falar e agir parecido com Lula – será capaz de cumprir o mesmo papel.

7/

Infelizmente, é nesse erro que Valério incorre.

Mas antes de falar disso, uma lembrança ao estilo Mark Twain: as expectativas de Valério acerca da superação do PT são um pouco exageradas.

Valério diz que a “disputa pela liderança da esquerda na etapa pós-Lula vai passar por um processo cujo ritmo é ainda imprevisível, talvez mais lento, mas inexorável”.

Valério afirma, também, que esta luta “já começou e teve cinco momentos decisivos”, nos quais ele destaca o seguinte: a tática de Boulos nas eleições de 2018; a presença do PSol na campanha Lula Livre; o desempenho de Boulos nas eleições municipais de 2020; a campanha Fora Bolsonaro em 2021, “em que Boulos se afirmou como o orador mais popular na Paulista”; as eleições de 2022, em que Boulos se elegeu deputado de esquerda com a maior votação em todo o país”.

Segundo Valério, estes “acertos” posicionam “o PSol e Boulos como seu porta-voz, melhor do que qualquer outros no que está por vir.”

Curiosamente, Valério nos priva de qualquer análise sobre a trajetória de Boulos, que entrou no PSOL em março de 2018, para ser candidato. Muito diferente de Lula, que foi construtor do PT desde a véspera.

Não se trata de um detalhe, pois como sabemos na política brasileira – e inclusive na esquerda brasileira – está cada vez mais comum que as pessoas entrem e saiam de partidos. O que faria da “estratégia Boulos” algo muito diverso daquilo que Valério supõe.

Mas o mais grave é que, no jeito de Valério analisar os fatos, a disputa pela liderança da esquerda brasileira se trava principalmente através de disputas eleitorais. Dos cinco “momentos decisivos” citados por ele, três são eleitorais.

Alguém pode dizer: Lula foi candidato presidencial em 1989, 1994 e 1998, antes de vencer em 2002. E foi eleito deputado federal em 1986 e foi deputado constituinte. Acontece que o desempenho de Lula em todas essas eleições é inseparável da construção do PT, da construção da CUT, das grandes lutas sociais travadas no Brasil antes e depois de 1989.

Supondo que a “sucessão” da esquerda pudesse ser reduzida a sucessão de Lula; e supondo que o “sucessor” de Lula pudesse ser Boulos; a pergunta que devemos fazer é: que tipo de esquerda alternativa ao PT seria esta, se ela surgir basicamente da atividade eleitoral?

8/

Valério, que de bobo não tem nada, tem consciência de que está apostando alto e creando cuervos. Talvez por isso o ponto 8 de seu texto seja uma digressão sobre os perigos que nos cercam, entre os quais ele destaca o divórcio entre os “doutores” da revolução e os “gênios” da política

Os “gênios” seriam os que “estão se preparando para a disputa das candidaturas e coligações para as prefeituras, e até para vereadores, em 2024”. Os “doutores” seriam os que estão polemizando sobre a atualidade da teoria da revolução. 

Valério afirma que “todos estes debates e controvérsias têm o seu lugar. Mas não deveriam estar dissociados uns dos outros, e só fazem sentido se houver clareza de estratégia”.

Entendo a preocupação de Valério, mas o problema é que, aceita sua “teoria” acerca da “estratégia Boulos”, é inevitável que os “gênios da política” tomem conta, pois o próprio Valério deu centralidade aos temas eleitorais.

Exagero?

Vejamos o que ele diz acerca dos “três campos” que “teremos, nos próximos anos, na esquerda radical”: os que continuarão petistas, os que buscarão “ultrapassar, simultaneamente, Lula e Boulos, pela esquerda” e os que “defenderão que Boulos é a liderança melhor posicionada para impulsionar uma reorganização da esquerda brasileira que tenha o impulso de construir um instrumento de luta, com peso de massas, superior ao que hoje é o PT”.

Ou seja: a reorganização da esquerda brasileira, construir um partido de massas melhor e maior do que o PT, passa por reconhecer que uma determinada pessoa é “a liderança melhor posicionada”.

Noutros tempos se chamaria isto de culto à personalidade. No caso, um culto meio precoce.

9/

Com isso chegamos ao ponto final do texto de Valério, em que ele – depois de incursionar pelo perigoso terreno do papel do indivíduo na história – tenta salvar sua alma lembrando que “sem uma onda de ascenso não é provável uma reorganização pela esquerda bem-sucedida a ‘frio’.”

Aqui cabe perguntar o que é mesmo que Valério entende como “reorganização da esquerda”. Quando o PT se firmou, não foi apenas uma sigla substituindo outras, foi uma política substituindo outra, foi uma estratégia socialista substituindo outras (a do populismo e a do etapismo).

A questão é: a tal “estratégia Boulos”, que Valério nos apresenta como derivada da trajetória eleitoral de uma pessoa, seria capaz de substituir a estratégia atualmente hegemônica no PT, por outro tipo de estratégia?

Minha resposta é: não. Sem luta de massas, sem uma “onda de ascenso”, nem o PT mudará de estratégia, nem o PT será superado por outra estratégia.

O PT pode ser derrotado eleitoralmente, pela direita. Pode até, embora isto seja muito pouco provável, ser superado eleitoralmente por outra esquerda. Mas mudar de estratégia, sem luta de massas? Impossível.

Assim, a questão é saber o que devemos fazer para contribuir para que haja luta de massas. 

No passado, Valério era dos que criticava o PT por ser (supostamente) um obstáculo para a luta de massas. Não sei se ele segue pensando assim. 

Mas deste ponto de vista, seu texto sobre a “estratégia Boulos” é um retrocesso total, pois o problema deixa de ser a mudança da estratégia da esquerda e passa a ser a mudança do “líder” da esquerda, o que na prática nos deixa nos marcos da mesma estratégia.

Sendo assim as coisas, sua crítica aos que “ainda apostam no PT” não faz o menor sentido.

Diz Valério: “O argumento forte dos que ainda apostam no PT, mesmo que seja liderado por Haddad, é que o PSol é muito menor. Melhor mal organizados no PT do que desorganizados”.

Valério se equivoca: pelo menos em nosso caso, o argumento dos que apostam no PT não é que o PSOL é “menor”. O argumento, se tiver que escolher um, pois há vários, é que o fator decisivo é o vínculo com a classe trabalhadora. 

O PT era “menor” na década de 1980, mas tinha um tipo de vínculo com a classe que o PSoL não tem. 

E mesmo hoje, mesmo deformado por décadas de institucionalidade, o vínculo do PT com a classe é de um tipo, uma qualidade, diferente do vínculo que o PSoL possui.

Em segundo lugar, não existe “PT liderado por Haddad”, ao menos no mesmo sentido de “PT liderado por Lula”. 

O papel que hoje é exercido por Lula, não será exercido, no futuro, por ninguém. Não há ninguém com a mesma estatura, influência, relações etc.

Em terceiro lugar, não sei de onde Valério tira a ideia de que achamos que “melhor mal organizados no PT do que desorganizados”. 

O PT é um partido e também um movimento social. Dezenas de milhões de pessoas se consideram petistas. O desafio de organizar estas pessoas é imenso. O potencial transformador que isso tem é sem tamanho. Não se trata de um “negacionismo” conservador que expressa acomodação às pressões do gigantesco aparelho, trata-se de não escolher a “marginalidade” citada pelo próprio Valério. 

Aliás, falemos as coisas como elas são, o PSOL ganhou algum espaço de massas onde mimetizou o petismo, ocupando o espaço que deixamos aberto por nossos erros e opções.

Mas isso é o de menos, neste debate. 

O mais impressionante é a tranquilidade com que Valério reconhece que “o PSol é um partido sem definição estratégica”.

Ou seja: o Partido que Valério propõe como alternativa ao PT é “sem definição estratégica”. 

Por óbvio, caso este partido tivesse êxito na superação do PT, através de um caminho eleitoral, o que teríamos seria qualquer coisa, menos uma alternativa a estratégia hoje vigente no PT.

Mas se é assim, por qual motivo mesmo que se considera justo ou necessário, do ponto de vista da esquerda, do ponto de vista da classe trabalhadora, superar o PT?

Na ausência de definição estratégica do Partido, o jeito é depender das provas “de integridade moral, coragem pessoal e inteligência política” de quem Valério propõe como liderança alternativa.

Com Boulos, promete Valério, “a renovação da esquerda será geracional, mas, também, programática”. Como o PSoL não tem definição estratégica, a única garantia é que o novo líder da esquerda seja o fiador da “mobilização de massas” e do objetivo de “ir além do neoliberalismo”.

Por qual motivo o PSoL teria êxito, mesmo sem definição estratégica, mesmo atuando em uma situação histórica pior do que a enfrentada pelo PT?  Por acaso o “novo líder” seria mais confiável do que o “velho líder”? As vossas canções seriam melhores do que as nossas?

Valério, no que parece uma piada pronta, termina seu texto assim: “E depois? Depois, como Napoleão respondeu um dia, improvisamos”. 

Valério pode ser acusado de qualquer coisa, menos de falta de honestidade intelectual. Afinal, nada mais honesto do que terminar seu texto reconhecendo que, mesmo que tudo saia como ele planeja, o jeito vai ser improvisar.

E já que é assim, tendo em vista que a tal “estratégia Boulos” é no fundo uma réplica de má qualidade – quase todos os nossos defeitos e poucas de nossas qualidades – melhor seria terminar citando o outro Bonaparte. Não seria tão elegante, mas seria mais preciso.

De resto, Boulos prefeito 2024. E, acima de tudo e antes de mais nada, longa vida ao Partido dos Trabalhadores.


Segue o texto criticado acima
(disponível também em: https://esquerdaonline.com.br/2023/11/01/a-estrategia-boulos/)

A estratégia Boulos

Todas as flores de amanhã estão nas sementes de hoje.
Um dia vale por dois, para quem diz «Já» e não «Depois»
O caminho mais curto nem sempre é o mais a direito
Provérbios populares portugueses

1. O PT é um dos maiores partidos de esquerda do mundo. No Brasil de 2023 o lulismo é uma corrente eleitoral maior que a esquerda. A disparidade da influência do lulismo e da esquerda é desigual – maior no Nordeste do que no Sul, por exemplo – mas é nacional, e essa diferença de peso social e influência ideológica é qualitativa. A esquerda brasileira é liderada pelo PT, o PT é dirigido pela CNB (Construindo um novo Brasil), e a CNB é uma articulação de líderes, parlamentares e grupos que respondem à autoridade de Lula. A preferência pelo PT, em escala nacional, é constante desde 1999, e os últimos dados informam, de junho de 2023 que alcança 29% (1). O PSol é o segundo partido da esquerda brasileira, pontuando 3%, em 2022, o que significa, em grandes cidades, uma simpatia um pouco maior (2). Mas a métrica para avaliação da relação de forças dentro da esquerda exige um modelo com muitas outras variáveis: (a) implantação nacional, número de filiados ou simpatizantes e militância orgânica; (b) implantação nos movimentos sociais, como sindical, popular, feminista, negro, camponês, LGBT, estudantil, indígena; (c) simpatia no mundo da cultura, artes e acadêmico, ou intelectualidade; (d) audiência nas redes sociais ou capacidade de disputa na internet; (e) representação parlamentar. Considerando todos estes elementos, o peso do PT ainda é imenso e, se considerado o fator Lula, avassalador. Esta influência decorre de muitos fatores, mas o mais importante é que as expectativas reformistas ainda prevalecem na maioria dos trabalhadores.

2. À esquerda do lulismo há três campos. Hoje a esquerda anticapitalista, num sentido amplo de organizações que defendem no programa a necessidade da revolução no Brasil, em suas variadas tradições, mas fragmentação hemorrágica, está dividida no terreno tático em três campos: (a) primeiro campo é composto pelas tendências de esquerda do PT (Democracia Socialista, Articulação de Esquerda e O Trabalho) que apoiam e ou participam do governo Lula, ainda que com posicionamentos críticos sobre os aliados da coligação, e apostam, prioritariamente na reeleição de Lula que, entretanto, terá 81 anos em 2026; (b) o segundo campo é ocupado pelas correntes que constituem o bloco majoritário do PSol e defendeu não entrar no governo, mas sustenta o governo diante da oposição de extrema-direita, tanto no Congresso Nacional, quanto nas ruas, preservando a independência para votar contra e criticar, e liberando filiados para assumir cargos em seu nome pessoal e dos movimentos sociais que representam e apostam em uma reorganização que tem Boulos como referência pública; (c) o terceiro é a parcela da esquerda radical que se posiciona como oposição de esquerda, entre as quais, as mais representativas apresentaram três candidaturas à presidência em 2022, o PSTU, o PCB e a UP, e apostam nas suas autoconstruções, sem uma liderança pública comum. A relação de forças entre os três campos é muito assimétrica. O campo do PSol é, quantitativamente, maior que o da esquerda do PT, e o terceiro campo é, qualitativamente, tão menor que os outros dois, que já está à margem da disputa que virá.

3. As esperanças reformistas não morrem sozinhas. As lições que ficaram em um século de disputas na esquerda, em escala internacional, entre as organizações reformistas e as mais radicais, se concentram em uma questão central: fora de uma situação revolucionária a maioria dos trabalhadores não rompem com as direções moderadas. Somente quando foram esgotadas todas as expectativas em soluções negociadas, o desafio da ruptura pode conquistar maioria entre os explorados. A luta revolucionária exige uma inesgotável paciência histórica. Mas o caminho para sair da marginalidade não é possível sem uma acumulação prévia que não se improvisa no calor da hora. A experiência dos governos de coalizão liderados pelo PT foi interrompida pelo golpe institucional em 2016. Esta é a chave para a compreensão da resiliência do lulismo. Nenhum dos outros partidos de esquerda tem peso próprio nas massas populares. São organizações com expressão em setores de vanguarda, mesmo o PCdoB que é, incomparavelmente, a maior. A conquista de sindicatos e de mandatos pode alimentar uma perigosa ilusão de ótica. Os trabalhadores apoiam, até com alguma regularidade, a liderança de revolucionários nos seus sindicatos, porque os conhecem, pessoalmente, são honestos e combativos. Ou podem elegê-los deputados. Mas isso não autoriza a conclusão de que querem que governem. Não querem, porque temem o radicalismo.  Ao contrário do que muitos, apressadamente, pensam, o apoio a Lula tem dimensão programática, mas o voto em revolucionários para a presidência de um sindicato ou para parlamentares é pessoal. Somente o PSol conquistou um pequeno espaço próprio, essencialmente, nas eleições para deputados. Mas há uma exceção, e ela foi uma façanha enorme. Na cidade de São Paulo, Boulos superou a candidatura do PT em 2020. Por isso, sua candidatura em 2024 é muito maior que uma tática eleitoral. Boulos concentra uma aposta estratégica.        

4. Três estratégias para a etapa pós-Lula. Estamos diante de um daqueles momentos raros em que uma questão central será incontornável: o que será da esquerda brasileira depois de Lula? Não haverá transição sem disputa. O fator chave deste processo será a luta de classes, que condiciona a evolução da relação social de forças, e o destino do governo Lula. Apesar da vitória eleitoral, a longa etapa defensiva de refluxo nas lutas sociais não se inverteu, o país permanece fraturado, e a extrema-direita mantém influência sobre um quarto da população, autoridade sobre a massa da burguesia, maioria nas camadas médias, e influência sobre uma parcela dos trabalhadores com contratos, sobretudo, no sudeste e sul. A aposta da esquerda do PT é defensiva, manter posições e defender a posição de liderança do PT como instrumento político de representação dos trabalhadores, disputando espaço interno, e apoiando Lula até o fim. Mas ninguém sabe se Lula poderá ou não concorrer em 2026. Se concorrer, vencendo ou não, a sucessão interna ao petismo seria adiada, assim como a reorganização da esquerda. Mas, se não concorrer, a hipótese da esquerda do PT apresentar uma candidatura contra Haddad em prévias é improvável. Mesmo que o faça, dificilmente poderá conquistar a visibilidade que Juan Grabois, através de Pátria Grande, alcançou nas primárias do peronismo em agosto recente. O mais provável seria uma candidatura Haddad com perfil e programa alinhado às posições mais moderadas no PT, assim como Sergio Massa no peronismo. Do que decorre que uma possível reorganização à esquerda dependerá, essencialmente, de uma disputa exterior ao PT, não interna. Quem se posiciona melhor nessa direção é o PSol, e a liderança de Boulos concentra esta esperança, mesmo se não vencer as eleições em São Paulo em 2024. Se, eventualmente, vencer, tudo se acelera. Já os partidos à esquerda do PSol são grupos de propaganda resignados, aparentemente, a um papel de eterna oposição testemunhal.  

5. O que a história nos ensina? A última vez que se colocou a questão foi há 45 anos atrás. Entre 1978/80, no intervalo de apenas dois anos, um processo acelerado pela primeira onda de mobilizações operárias, sindicais e populares abriu uma luta política frontal na oposição. Então, a esquerda se dividiu em três campos: (a) os que defenderam até o fim a presença da esquerda dentro do MDB, sob a liderança dos liberais, como o PCB, o PCdoB, o MR-8; (b) os que imaginavam que a crise da ditadura abriria as condições para que uma organização revolucionária conquistasse influência de massas; (c) os que compreenderam a necessidade do PT como uma mediação para disputar a liderança das massas com o MDB e Brizola contra a ditadura. O protagonismo de Lula à frente das greves do ABC abriu a possibilidade de uma reorganização que deslocou, sobretudo, o papel do PCB, que tinha sido o principal instrumento de representação da esquerda no Brasil até 1964. A questão é saber se o ciclo histórico do PT se esgotará ou não numa etapa pós-lulista.

6. Por que a estratégia Lula foi vitoriosa? Que lições deixou o processo que iniciou em 1978/80, e deu um salto de qualidade entre as Diretas de 1984, e as primeiras eleições presidenciais em 1989? Por que o PT substituiu o PCB? Por que demorou dez anos? Podemos destacar a rara combinação de cinco fatores centrais, avançando dos mais objetivos para os subjetivos: (a) o primeiro foi o impacto da crise superinflacionária crônica sobre a experiência de vida de uma nova geração de trabalhadores urbanizados, que procuraram os sindicatos para se defender, e descobriram sua força social de choque na onda de greves; (b) o segundo foi o enfraquecimento da ditadura militar, depois de quinze anos no poder, e o deslocamento lento, mas ininterrupto, da maioria das camadas médias e do povo para a oposição, enquanto a liderança liberal-burguesa do MDB apostava no quietismo, e no calendário eleitoral da transição lenta segura do governo Figueiredo/Golbery; (c) o terceiro foi a explosão da direção do PCB com o retorno de Luís Carlos Prestes, a disputa fracional que levou ao afastamento do lendário líder histórico, e a capitulação à direção do MDB; (d) o quarto foi a união das três componentes fundamentais, ainda que com influência desigual, que apostaram no projeto de construção do PT para derrubar a ditadura e implodir o plano de transição negociada, e disputar com Tancredo Neves, Ulysses Guimarães, Franco Montoro, mas, também, Leonel Brizola a liderança da oposição: os sindicalistas metalúrgicos, bancários, professores, petroleiros, entre outros; as correntes de esquerda que tinham se reorganizado na clandestinidade; e a esquerda social e popular católica; (e) o último e mais imprevisível dos fatores foi a presença, compromisso e capacidade de Lula, porque o seu papel pessoal foi insubstituível. Demorou dez anos, mas foi, paradoxalmente, rápido. Dez anos pode parecer uma eternidade na escala de uma vida, mas, na métrica da história, foi vertiginoso. A afirmação de um partido de esquerda, e de um metalúrgico na sua liderança, uma “revolução” na consciência política de uma geração, só foi possível, por muitos fatores, mas o principal foi que o PT acertou na linha: soube ser firme na luta contra a ditadura, e ser oposição aos governos Sarney, Collor, Itamar e Fernando Henrique.  

7. A encruzilhada histórica. A disputa pela liderança da esquerda na etapa pós-Lula vai passar por um processo cujo ritmo é ainda imprevisível, talvez mais lento, mas inexorável. Esta luta já começou e teve cinco momentos decisivos: (a) as eleições de 2018 foram o primeiro, e a tática de apresentação da candidatura de Boulos, alicerçada na defesa da Frente Única e na identificação de Bolsonaro como o inimigo principal, permitiu despertar muito respeito, no primeiro turno, reforçado pelo engajamento leal no segundo turno, que foi fatal para Ciro Gomes; (b) o segundo foi, pela positiva, a presença do PSol na campanha Lula Livre e, pela negativa, a ausência da maioria da esquerda radical exterior ao PT; (c) o terceiro foram as eleições municipais de 2020, o desempenho extraordinário de Boulos, mas também, de Manuela D’Ávila, que se projetou como liderança feminista de projeção nacional; (d) o quarto foi a campanha Fora Bolsonaro em 2021, em que Boulos se afirmou como o orador mais popular na Paulista, e consolidou como referência nacional; (e) o quinto foram as eleições de 2022, em que o Psol, pela primeira vez, apoiou o PT desde o primeiro turno, e Boulos se elegeu deputado de esquerda com a maior votação em todo o país. São estes acertos que posicionam o PSol e Boulos como seu porta-voz, melhor do que qualquer outros no que está por vir.

8. A estratégia Boulos. Um dos perigos que nos cercam é o divórcio entre os “gênios” da política e os “doutores” da revolução. Existe uma parcela da esquerda que só tem interesse nos debates da tática, e outra que só se dedica a discussões de programa. Os primeiros estão se preparando para a disputa das candidaturas e coligações para as prefeituras, e até para vereadores, em 2024. Os segundos estão polemizando sobre a atualidade da teoria da revolução em Lenin, Trotsky, Luckácz ou Gramsci. Todos estes debates e controvérsias têm o seu lugar. Mas não deveriam estar dissociados uns dos outros, e só fazem sentido se houver clareza de estratégia. Teremos três campos, nos próximos anos, na esquerda radical: (a) os que se alinharão com a defesa do PT, independentemente, do desfecho do governo Lula, e mesmo que Haddad se consolide como seu herdeiro; (b) os que insistirão em permanecer adversários de Boulos, interna ou externamente ao PSol, na expectativa que será possível ultrapassar, simultaneamente, Lula e Boulos, pela esquerda; (c) os que defenderão que Boulos é a liderança melhor posicionada para impulsionar uma reorganização da esquerda brasileira que tenha o impulso de construir um instrumento de luta, com peso de massas, superior ao que hoje é o PT. 

9. Dois “negacionismos”. Sem uma onda de ascenso não é provável uma reorganização pela esquerda bem sucedida a “frio”. Mas entre a precipitação de um etapa pré-revolucionária, e a permanência da atual situação reacionária, há vários cenários intermediários possíveis. O Brasi não é “vulcânico”, como a Argentina, mas aqui as placas tectônicas também se movem. O argumento forte dos que ainda apostam no PT, mesmo que seja liderado por Haddad, é que o PSol é muito menor. Melhor mal organizados no PT do que desorganizados. Trata-se um “negacionismo” conservador que expressa acomodação às pressões do gigantesco aparelho. Os que apostam na possibilidade de construção de um partido revolucionário, realmente, revolucionário, o PRRR, têm como argumento forte que o PSOL é um partido eleitoral, portanto, reformista, e Boulos não merece confiança. Trata-se de outra forma de negacionismo. O PSol é um partido sem definição estratégica, mas já provou que recebe no seu interior todos os superrevolucionários que quiserem construir, lealmente. Já a desconfiança pessoal de Boulos é um argumento despolitizado. Uma aposta política não pode repousar em cálculos de preferências subjetivas. Boulos já deu provas de integridade moral, coragem pessoal e inteligência política.  A renovação da esquerda será geracional, mas, também, programática. O desafio é lutar pela mobilização de massas e ir além do neoliberalismo, E depois? Depois, como Napoleão respondeu um dia, improvisamos.  

Notas

https://www1.folha.uol.com.br/poder/2023/06/datafolha-29-se-declaram-muito-petistas-e-25-muito-bolsonaristas.shtml. Consulta em 30 outubro 2023.

https://www1.folha.uol.com.br/poder/2022/10/datafolha-pt-tem-mais-simpatizantes-mas-tambem-e-o-partido-mais-rejeitado.shtml Consulta em 30 outubro 2023.

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