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Um novo governo em um mundo tenso

O ano de 2023 representa uma virada no Brasil, após seis anos de políticas neoliberais intensificadas nos últimos quatro, com uma ideologia conservadora, antidemocrática e propositalmente divisionista. 2023 representa de certa forma a busca de uma readequação após os impactos desestabilizadores da Covid-19, simbolizada pela brusca e total reabertura da China logo no início do ano. Mas a pandemia e os impactos igualmente desestabilizadores da guerra na Ucrânia, mais do que ser fontes causadoras, evidenciaram e ampliaram tendências em curso. Neste ensaio, vamos olhar o contexto internacional tentando ir além de uma abordagem conjuntural.

Já é cliché citar a célebre frase de Antônio Gramsci, que o velho está morrendo e o novo não nasceu. Ou falar em um nova Grande Transformação, em referência a Karl Polanyi. Mas é disso que se trata. Só que a transformação que estamos vivendo não somente é grande, mas também longa. Polanyi referia-se à transformação de um capitalismo liberal privatista para um capitalismo socialmente enraizado, que coincidiu com a passagem da hegemonia Britânica para a Pax Americana. Trata-se de um processo que começou mais ou menos com a Primeira Guerra mundial, (1914) passa pela Grande Depressão (1929), o New Deal do Franklin Delano Roosevelt e termina com o fim da Segunda Guerra, em 1945, quando se afirmou a hegemonia estadunidense e montou-se todo um arcabouço institucional internacional, com a ONU, o sistema FMI/Banco Mundial/ GATT com o dólar como moeda de referência global.

Assim, em que consistiria a Grande e Longa Transformação que estamos vivendo hoje? Em primeiro lugar, uma gradual superação da hegemonia estadunidense e, por tabela, a centralidade do dólar. É um processo complexo e não-linear. Não se pode subestimar a capacidade de resiliência do capitalismo estadunidense. E, ao mesmo tempo, não está claro como ficaria um mundo pós-Pax Americana. A China teria aspirações e condições para assumir? Ou uma nova estabilidade dar-se-ia em torno de vários polos regionais de poder? Por enquanto, parece que a China entende que um enfraquecimento do poder dos EUA na Ásia seja parte da aspiração para continuar sua ascensão. Essa posição coincide com a vontade de várias potências médias, inclusive do Brasil, que começaram a advogar um mundo mais multipolar. Foi inclusive nesse contexto que surgiu o BRICS.

De outro lado, há um quase consenso nos EUA de que a manutenção da sua hegemonia exige uma contenção da China e um esforço para evitar o surgimento de polos de dinamismo regional que possam enfraquecer sua posição. Essa tensão aparece, por exemplo, na tentativa estadunidense de limitar acesso da China a tecnologia avançada e, de outro lado, a demonstração da força militar chinesa no estreito de Taiwan.

Uma segunda transformação estrutural é representada pelo que vem sendo chamada de quarta revolução industrial-tecnológica, ou Indústria 4.0, que aponta para novas formas de organização da produção, distribuição e consumo. Inteligência artificial e um avanço qualitativo na interconectividade, digitalização, na biotecnologia e na robotização fazem parte desse processo. O potencial disruptivo é enorme e já se faz presente. A Covid-19, sem dúvida, acelerou a transformação mostrando o potencial da economia das plataformas, por exemplo, com compras, ensino, consultas médicas online. Mas as reformas no tecido social necessárias para que a introdução em larga escala dessas tecnologias possa avançar sem provocar contradições andam a passos mais lentos. O capitalismo será capaz de mobilizar e absorver esse progresso para garantir um novo ciclo de acumulação (chamado já por alguns de capitalismo 4.0), sem provocar movimentos destrutivos do ponto de vista da coesão social?

Ao mesmo tempo, a quarta revolução industrial-tecnológica está interligada não só com o acirramento da concorrência oligopolista, mas também com a rivalidade interestatal. O domínio das novas tecnologias garante não só a capacidade de se apropriar da maior parte dos lucros gerados ao longo das cadeias de produção-distribuição, mas são também fator essencial para a projeção de poder militar. E por isso se mistura com a primeira grande transformação descrita acima.

Uma terceira transformação tem a ver com uma necessidade imposta para alterar a forma de organização da produção e consumo relacionado às crises climáticas, chamadas de forma eufemística de “mudanças climáticas”. Ou seja, essa transformação têm uma dinâmica própria, mas está muito ligada à quarta-revolução industrial-tecnológica, porque é desta que devem vir respostas estruturais para a transição energética, revoluções na mobilidade e novas formas de produzir alimentos. Portanto, embora seja comum afirmar que no mundo de rivalidade e do conflito a questão do clima seria um espaço neutro, no qual a cooperação possa florir, isso na prática não ocorre necessariamente.

É verdade que exige cooperação, mas o controle sobre as tecnologias e as novas cadeias de produção-distribuição são objeto de forte concorrência e rivalidade. Além do mais, a guerra na Ucrânia mostrou que a transição energética é um caminho longo, complexo e conflitivo.

Apostar numa radical mudança no padrão de consumo é uma solução, mas com força política real próxima a zero. Entra nessa equação um potencial para acirrar o conflito distributivo, o que ficou bem visível na Europa com o fenômeno da “pobreza energética” no meio da adaptação forçada pela invasão russa na Ucrânia.

A quarta e última transformação estrutural a ser mencionada aqui é a demográfica. O mundo pulou no século XX de cerca de 1,5 bilhão para mais de 6 bilhões de habitantes. Hoje já estamos com 8 bilhões e a perspectiva é chegar ao marco de 10 bilhões em torno de 2050. Não é difícil imaginar que isso aumenta o estresse sobre os recursos energéticos e alimentos, mas também sobre fluxos migratórios. Na verdade, o crescimento em si não seria uma transformação, porque isso vem acontecendo desde a primeira revolução industrial. Detrás desses números se escondem diferenças regionais profundas, com estagnação e diminuição da população em algumas regiões e explosão demográfica em outras, em particular a África, que caminha para ter no final do século XXI uma população maior que a China e a Índia juntas.

Ao mesmo tempo, há o fenômeno do envelhecimento que não se limita mais aos países mais ricos, mas começa a ser um desafio também em países de renda média, com grandes consequências para a já conflitiva questão previdenciária. Embora ainda sem consequência imediata, a notícia a respeito da diminuição nominal da população chinesa, no início de 2022, é um sinal dos tempos. Não é, por acaso, que o setor de saúde, no seu sentido mais amplo (incluindo a “economia de cuidado”), tem destaque na quarta-revolução industrial com promessas das inovações disruptivas.

Fica evidente que não se trata só de uma nova “Grande Transformação”, mas também de uma Longa Transformação, cheia de movimentos contraditórios, incertezas e conflitos.  Não sabemos para onde vamos, se estamos no meio ou no início, e até podemos discutir sobre quando começou, mas há bastante consenso de que o mundo passa por mudanças estruturais.

Ou seja, qualquer governo atua no curto prazo, diante da realidade existente, mas está operando em um terreno em movimento, o que torna relevante a compreensão sobre os deslocamentos das placas tectônicas (como a grande e longa transformação às vezes é chamada). Podemos fazer um paralelo com a construção de uma casa em área de risco. A construção exige seu conhecimento, materiais e responde a uma demanda concreta. Mas um conhecimento do risco do terreno pode se tornar fundamental a longo prazo. A conjuntura se mistura com os movimentos estruturais, mas pode enganar. Como por exemplo o caso da invasão russa na Ucrânia, que aponta para o passado e deve ser entendido como um ato defensivo de uma potência em declínio e não como parte da construção da próxima ordem internacional.

A complexidade da relação entre políticas de curto prazo e as transformações estruturais em curso ou necessárias se demonstra, por exemplo, na questão da transição energética no Brasil. Não há dúvida de que é urgente a Petrobras se transformar em uma empresa de energia e usar seus lucros extraordinários para explorar fontes renováveis, inclusive avançar em novas gerações de bioenergia, além de eólica offshore e solar. É um escândalo ver as petrolíferas europeias investirem pesadamente no Pré-sal e ao mesmo tempo também em energias renováveis no próprio Brasil, enquanto a Petrobras, nos governos Temer e Bolsonaro, se especializou em pagar dividendos (não tributados, diga-se de passagem).

No ano passado cerca de 95% dos lucros da Petrobras foram distribuídos, um valor equivalente a nada menos de R$ 180 bilhões (!), lembrando que dois terços das ações com direito a dividendo estão nas mãos dos fundos privados, dos quais a metade no exterior. Mas ao mesmo tempo seria um grande erro não entender a importância de, simultaneamente, continuar com a exploração de petróleo e gás, não só na região do Pré-sal, mas também na Margem Equatorial. Isso porque mesmo com todos os esforços possíveis e imaginários a transição energética é longa.

Em 2023 o mundo consumirá pela primeira vez mais de 100 milhões de barris de petróleo por dia, contra 68 milhões em 1992, ano da realização da Conferência das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento e Meio Ambiente. A União Europeia, que teria mais interesse geopolítica e pressão da opinião pública para acelerar a transição, alcançou, com muito esforço, em 2020, a meta de 20% energia renovável, ou seja quase 70% continuam fósseis (sendo o restante nuclear).

Mesmo depois de o mundo alcançar o pico de consumo de petróleo, nos próximos 10 a 15 anos, a queda posterior não será abrupta, enquanto muitos poços que estão produzindo hoje no mundo estarão esgotados. Logo, embora a tendência seja, e deve ser, de uma saída da dependência de energia fóssil, não investir em nova produção durante a fase de transição leva ao caos, não à sustentabilidade. Ao mesmo tempo fica evidente a necessidade de priorizar e orientar investimentos em tecnologias que possam acelerar essa transição e minimizar os impactos da utilização dos fósseis enquanto durarem.

Enquanto isso, a concentração de renda não para de crescer. O número de bilionários aumenta, embora a defesa, ou reconquista, da coesão social tenha entrado na agenda dos países mais avançados, conscientes dos limites gerados por quatro décadas de políticas neoliberais. As classes privilegiadas podem até, em Davos, se apresentar como modernas e preocupadas com os problemas ambientais e sociais, mas ao voltar para suas casas tentarão garantir o melhor negócio possível, preocupadas com a rentabilidade de curto prazo de seus investimentos.

As inseguranças, a falta de perspectiva e confiança também explicam o aumento, de forma bastante generalizada no mundo, do consolo nas religiões, exploradas politicamente ou não. E cresce a busca de salvadores na terra que se apresentem com soluções que cabem em um tuíte, dando lugar a ondas de lideranças populistas com surpreendentes sucessos eleitorais.

No meio disso, há de se observar um movimento defensivo importante por parte dos países desenvolvidos: a volta do nacionalismo econômico. Já antes da Covid-19 e da Guerra na Ucrânia, estava ganhando força um debate sobre os limites da globalização neoliberal diante dos desafios estruturais mencionados. Nos EUA, em particular, há uma referência explicita à ameaça chinesa e das crises climáticas para justificar um novo ativismo estatal com investimentos públicos bilionários que envolvem vários programas e projeto, dos quais o mais abrangente ganhou o nome de Build Back Better, que seria “reconstruir melhor”. O “pulo do gato” está na palavra  “melhor”. Um exemplo são os estímulos por meio de subsídios pesados à instalação de novas fábricas de semicondutores, componente chave para estar à frente da quarta revolução industrial-tecnológica.

Na União Europeia, foi lançado um plano de recuperação igualmente ambicioso chamado de NextGenerationEU (“Nova Geração União Europeia”). A palavra-chave utilizada é a “autonomia estratégica”, conceito emprestado da área de segurança, que se tornou a referência para as novas orientações da política econômica. Políticas industriais que eram consideradas ultrapassadas no mundo globalizado se fazem de novo presentes. Além da própria União Europeia, vários países membros, publicaram suas novas estratégias para garantir uma base industrial-tecnológica sólida. Na mesma linha, o Japão apresentou em dezembro do ano passado sua nova estratégia de segurança com uma seção inteira sobre segurança econômica, lançando o conceito de “prosperidade econômica autônoma”, Ao mesmo tempo, o governo japonês articulou a montagem de uma nova empresa chamada Rapidus para a fabricação de microprocessadores da nova geração, envolvendo as empresas nacionais Sony e NEC.

Os desafios do governo Lula

O Brasil está de volta ao mundo com um ativo político fascinante: quem não quer ficar na foto com Lula? Mas, como, se tentou argumentar nesse ensaio, o mundo não está tranquilo nem com cara de paz e amor. Sem dúvida, o Brasil vai encontrar apoios e aplausos para se desfazer das políticas destrutivas, em particular o desmatamento, o garimpo ilegal e o descaso total com os povos indígenas.  Mas, os interesses econômicos e financeiros que lucraram com as políticas liberais de Paulo Guedes pressionam de dentro e de fora, desde a apuração das urnas, para que o Brasil mantenha o que a Folha de S. Paulo, no seu editorial de 30 de dezembro passado, chamou, pasmem, de “legado na economia a preservar para bem-estar social”. As políticas econômicas correspondentes são consideradas “técnicas”.

O grande desafio para uma verdadeira nova inserção internacional do Brasi passa pela capacidade de provocar uma reindustrialização em novas bases tecnológicas e ambientais tendo como objetivo a médio-longo prazo a superação da sua condição periférica.  Isso exige coordenação de um Estado que reorganiza sua capacidade de execução e investe pesadamente em Ciência, Tecnologia e Inovação, a verdadeira chave para a soberania econômica. Há de se lembrar ainda que o Brasil é um dos maiores receptores de investimentos de empresas multinacionais do mundo. Cabe uma postura ativa para que estes, independentemente de seu país de origem, sejam articulados com os objetivos de desenvolvimento econômico e da soberania política.

Em particular, é preciso buscar uma sinergia com o esforço para aumentar a capacidade tecnológica endógena, o fortalecimento da capacidade exportadora com maior valor agregado e da empresa nacional. Esses devem ser, inclusive, os critérios para uma reavaliação do Acordo União Europeia-Mercosul, a entrada na OCDE ou a busca de uma expansão da relação com a China.


		

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