Completando os seus primeiros 30 dias, o governo do presidente Lula – aconteça o que mais acontecer – levará entre suas marcas para a história o ataque golpista de tipo fascista logo na primeira semana, às sedes dos Três Poderes que foram meticulosamente desguarnecidas para permitir a entrada dos vândalos (8 mil na informação de Lula).
2000 deles foram detidos, segundo a imprensa, 1500 processados, e 1000 continuavam detidos em Brasília. Há entre eles, militares dos corpos auxiliares, ativa e reserva da PM, Civil, e da PF (o ex-ministro da Justiça, Torres). Há oficiais do Exército investigados mas nenhum da ativa punido até agora, muito menos um general. A apuração das responsabilidades apenas começou, é conhecida a osmose entre os corpos militares e o bolsonarismo país afora. A Justiça pode empurrar alguns julgamentos por anos.
Houve uma conspiração militar, mais uma na história brasileira, entre aqueles que se acham tutores da republica cuja “proclamação”, lembremos, foi um golpe militar. Mas fatores internos – a extraordinária vitória popular da eleição de Lula contra todos os obstáculos – e fatores externos – Biden não queria um discípulo de Trump no governo – frearam a conspiração para manter Bolsonaro.
Nem a Carochinha acreditaria que o questionamento das urnas eletrônicas, o absurdo 7 de setembro, o bloqueio das estradas, passando por dois meses de acampamento nos quartéis até este ataque nacionalmente organizado no dia 8, foram obra de militares de patente intermediária financiados por obscuros fazendeiros e empresários, ajudados por pastores.
A opinião democrática, tal como o PT, devem continuar exigindo a investigação e a punição de todos responsáveis – “cadeia para os golpistas!” – uma nova exigência política que embandeirou de certo modo o conjunto de compromissos de campanha.
Lula corretamente demitiu o comandante do Exército, general Arruda, no dia 14. Atenção, a medida difere das demissões de centenas de civis e militares herdados em cargos de Bolsonaro, pois Arruda fora nomeado pelo próprio Lula no intento da “pacificação” expresso pelo ministro da Defesa, Múcio. Depois, o novo comandante, general Tomás, foi o “melhor” que se achou entre os quatro estrelas, um oficial que ajudou o general Villas Boas, a quem assessorava em 2018, no famoso tuite de pressão sobre o STF para mandar Lula para a cadeia e tirá-lo da eleição vencida por Bolsonaro.
Um alerta
A substituição do comandante pelo novo general Tomás ou outro, por si, não poderia resolver o problema estrutural das Forças Armadas. Altos oficiais são selecionados em décadas. No Brasil, foram auto-anistiados os crimes dos militares na Ditadura, não houve uma ruptura como em outros países, e a seleção seguiu seu padrão. Tanto é que Augusto Heleno, jovem apoiador de uma conspiração golpista contra o ditador Geisel e sua “abertura”, seguiu na confraria e chegou às quatros estrelas
Uma reforma institucional das Forças Armadas, começando por anular o artigo 142 da Constituição que lhes atribui a Garantia de Lei e Ordem, é fundamental. Também são essenciais outras reformas, como a agrária, da mídia, do judiciário, as reestatizações, a taxação dos milionários e a libertação do Orçamento do jugo serviço da dívida. Esse Congresso não fará nada disso.
Nesse sentido, a tentativa de golpe do dia 8 foi um alerta sobre os obstáculos a serem superados pela via da soberania democrática do povo, para resgatar a reconstrução e a transformação deste país num conjunto de reformas. Em algum momento, a questão da convocação de uma Constituinte Soberana se colocará.
Agora, já, a punição dos conspiradores graúdos seria um passo no enfrentamento do esgotado arcabouço institucional da república. Se ficarmos no miúdo civil e militar, o futuro será mais difícil para os compromissos do governo. Ficaríamos a mercê do Congresso de maioria reacionária que agora toma posse, e do Judiciário que já mostrou como pode oscilar ao sabor do humor da elite.
Merval Pereira, um porta-voz da Globo, condenou os vândalos mas advertiu Lula (no ar) a ser generoso, pois o país saiu “dividido” das eleições. Quer dizer, ganhou mas nem tanto… Sempre que pode, ele cobra de Lula o aperto fiscal, que foi a parte que 3ª via claramente perdeu, mas não se conforma. O presidente do BC “autônomo” legado por Bolsonaro, Roberto Campos Neto, sempre sensível ao “mercado”, demorou 12 dias para condenar o 8 de janeiro. Ele comanda a taxa de juros e política de metas de inflação que levam a um ajuste fiscal. Os bolsonaristas, eles, quando estiveram no governo fizeram um ajuste brutal para o povo mas generoso para o patronato. Por aí se pode ver que cada coisa é uma coisa, mas de algum modo todos eles se “comunicam”.
O governo Lula que foi uma conquista, deve acelerar sua pauta de compromissos populares para criar uma base social de sustentação mais sólida para concretizar os compromissos em face dos obstáculos.
Questões da hora
No primeiro mês há anúncios e ações positivas, como a recusa aos pedidos de Scholtz e Macron a se engajar militarmente com a Ucrânia na guerra iniciada por Putin. A iniciativa na Terra Ianomâmi desvelou ao público a combinação mafiosa de garimpo ilegal e cumplicidade de autoridades (inclusive dentro dos Batalhões de Selva) que está matando essa gente. Houve várias medidas para reverter o obscurantismo que vem do golpe do impeachment.
Não faremos aqui um exame extensivo. Mas cabem destaques:
O aumento de 15% do piso salarial dos professores foi uma medida importante, tem agora que ser aplicada. A revisão da legislação por Bolsonaro não anulou a faculdade do governo fixar o índice de correção. Quando prefeitos pretextarem não ter caixa, no limite devem recorrer ao governo federal. Em Fortaleza, a categoria se sentindo respaldada pelo anuncio federal, já fez dois dias de greve 25 e 26 de janeiro para obrigar o prefeito a pagar o piso e os precatórios.
A elevação da faixadeisenção do Imposto de Renda (IRPF) para R$ 5.000 foi um compromisso assumido no lançamento da campanha presidencial na porta de Volkswagen. Ao contrário do que disse o ministro da Fazenda, Haddad, ele não depende da anterioridade de um ano, porque não é um aumento de impostos mas uma diminuição. E isso já foi feito como admitiu o ministro do Trabalho, Marinho em entrevista. Sem reajuste da tabela há muitos anos, a medida retiraria 28 milhões de onde não deveriam estar. Lula deu a entender que a condiciona à uma reforma tributária no 1º semestre, deixando a proposta para o 2º semestre, logo para vigorar em 2024. Há que abrir a discussão a respeito, não é “razoável”.
A reivindicação dos eletricitários de a reestatização da Eletrobras (por exemplo, via recompra de ações) é parte do resgate da soberania nacional, tem simpatia popular, é compatível com uma política de tarifas mais baixas e com os direitos dos trabalhadores. Há um Manifesto pela reestatização que se dirige ao governo, lançado pelo CNE (Coletivo Nacional de Eletricitários, 45 federações e sindicatos) que se deve divulgar e subscrever:
https://docs.google.com/forms/d/e/1FAIpQLSf2FmZ0Lwx8-xIeyEo6M_UvHf-eQvZsNUNF37nfrN95O_GLw/viewform
Lula falou no Diretório Nacional e também na reunião com a s centrais sindicais que se deveria cobrar o governo. Comecemos.
Premonitório
O PT já esteve 13 anos no governo. Coligações nunca resolveram, por si, pela sua “amplitude”, a sustentação nos momentos cruciais. Os desdobramentos destas questões acima citadas, e várias outras, dirá se a base social que se mobilizou pela vitória de Lula e do PT agora, se sentirá motivada ou não pelas ações de fundo do governo contra os obstáculos conhecidos.
A “conspiração” militar pode entrar em banho-maria, mas o bolsonarismo não está morto. Algumas promessas não cumpridas do novo governo seriam um combustível para a agitação dos fascistas. O dito centro da 3ª via que não decolou na eleição, logicamente está à espreita. Repetindo, o ataque de 8 de janeiro foi um alerta, a situação é mais difícil, não é a da 2003.
No primeiro dia do mês, na posse, Lula leu a sua fala no Parlatório. Falou de “olhar para a frente e esquecer nossas diferenças”. De outro lado, também falou de “reagir a quaisquer ataques de extremistas que queiram destruir a nossa democracia”. Mas mais razão teve a massa presente na cerimônia que irrompeu e interrompeu aos gritos de “sem anistia! sem anistia!”. Esses populares, espontaneamente, criaram uma consigna que viralizou depois.
Considerando o ataque às sedes dos poderes uma semana depois, e a toda a tensão com os generais que não “esquecem as diferenças”, deve se reconhecer que o “sem anistia, sem anistia” foi uma intervenção de massas premonitória. E não tem nada de sobrenatural, pois está inscrita na história profunda que a massa popular vive. Essa expressão genuína e autônoma traz um amadurecimento político. Numa situação difícil, nos dá razões para otimismo.