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Política Radioativa

Na madrugada de 26 de abril de 1986, o corpo de bombeiros da pequena cidade de Pripyat, localizada a 20km de Chernobyl, Ucrânia, foi chamado para conter um incêndio no reator 4 da usina nuclear V.I.Lênin. Movidos em parte pela subestimação dos riscos, em parte pelo heroico voluntarismo soviético, os bombeiros daquela noite lidaram com o incêndio de Chernobyl como se fosse outro qualquer. Em alguns dias, porém, estariam praticamente todos mortos em decorrência da contaminação radioativa.

A imagem é assustadora, mas justamente por isso, serve, no plano metafórico, para pensar o Brasil atual.

A política da extrema-direita bolsonarista, de orientação neofascista, emergiu dos escombros da ordem social brasileira, profundamente abaladas pela crise econômico-política que despontou em 2008, se intensificou a partir do golpe de 2016 e culminou no governo eleito em 2018, destruindo quase tudo pelo caminho.

Ainda impressiona que amplos setores sociais, especialmente do campo de esquerda, subestimem tão profundamente os efeitos desse ciclo de crises sobre a sociedade brasileira, em geral, e sobre o sistema político, em particular. A verdade é que o Brasil viveu, sobretudo a partir de 2016, um processo que culminou na implosão do regime político inaugurado pela Constituição de 1988 e que convencionamos chamar de Nova República.

Institucionalmente, ao cassar a soberania popular na sua expressão mais simbólica, a eleição direta para Presidência da República, o Legislativo e o Judiciário – o primeiro ao aprovar e o segundo ao avalizar o impeachment sem crise de responsabilidade – enfraqueceram profundamente o poder executivo que, no regime presidencialista, é o eixo estruturante da sua arquitetura político-institucional. Como resultado, transitamos silenciosa, mas indubitavelmente, para um novo regime político, carente de legitimidade e abertamente disfuncional. Nesse “novo regime”, o amálgama instável de presidencialismo e parlamentarismo sobrevive tensionado pela hipertrofia de um judiciário autárquico e autorregulado.

Esse movimento institucional veio acompanhado de uma operação política ainda mais arriscada, por meio da qual as classes dominantes buscaram interditar o partido e a liderança política que, desde a redemocratização, consolidaram-se como o principal instrumento de representação dos setores populares organizados. Foi esse o sentido político da investida jurídico-midiática contra o PT e contra Lula, que culminou na prisão e na inelegibilidade, ambas ilegais, daquele que liderava as intenções de voto em 2018. A principal consequência dessa operação foi abrir espaço para uma investida violenta contra os direitos trabalhistas e sociais que, de tão radical, funcionou na prática como uma constituinte às avessas, cujo efeito trágico foi produzir, em questão de meses, milhões de miseráveis e famintos.

É sintomático que tenha sido Jair Bolsonaro, no seu discurso da Avenida Paulista de 25 de fevereiro, a alertar sobre os riscos de uma operação política como a que tirou Lula da eleição de 2018. A simetria é tão falsa quanto acintosa, mas o fato é que, de consequências nefastas de crises não resolvidas, Bolsonaro entende bem. Foi justamente uma crise dessas que abriu caminho para “um fodido, um deputado do baixo clero, escrotizado dentro da Câmara, sacaneado, gozado, uma porra de um deputado” ser eleito presidente. Ainda nas palavras do próprio, “muitos (incluindo ele mesmo) não conseguem entender como isso aconteceu”.

A explicação que Bolsonaro talvez não alcance está no fato de que momentos excepcionais produzem forças de exceção e foi justamente isso que aconteceu no Brasil a partir da implosão de 2016. Dos escombros da ordem econômica, política e social brasileira, emergiu e se fortaleceu um movimento de extrema-direita, articulado nacional e internacionalmente com o neofascismo em ascensão, que se ancora justamente numa política radioativa.

Política radioativa porque, em primeiro lugar, sua força advém da intensa mobilização do seu núcleo duro, formado – tal como mostram todas as pesquisas empíricas sobre bolsonarismo, incluindo a sondagem feita no ato mais recente – por homens, brancos, ricos, escolarizados e politicamente conservadores. Não significa dizer, é óbvio, que o bolsonarismo não tem apoio em outros setores sociais – incluindo mulheres, pobres e negros. Como um movimento de massas, o neofascismo tem entrada em amplas camadas, inclusive nas camadas populares. Porém, é fundamental compreender que sua dinâmica política depende essencialmente da radicalização do seu núcleo duro, cuja intensa mobilização produz a energia social necessária para contaminar, por irradiação, outros setores sociais.

Mas é política radioativa também em outro sentido: apesar se aparentar ser uma força política como todas as outras, seu efeito básico é profundamente destrutivo. O neofascismo é um movimento que emerge de crises sociais, econômicas e políticas muito profundas e, com uma aparência de solução antissitêmica, opera para intensificar essas mesmas crises, aprofundando as contradições do sistema ao ponto de levar à sua autoimplosão. Por isso, a pertinência de fórmulas que descrevem o bolsonarismo como um movimento que aposta no caos e nele se fortalece. Mas não custa lembrar que, nesse processo destrutivo, tentativa é fazer com que a destruição valha para os outros, não para si mesmos. De fato, na obsessão de se salvar a todo custo, os fascistas recorrem simbólica e materialmente ao uso da força bruta como mecanismo básico de autopreservação. Por isso, o apelo explícito e constante ao armamentismo, ao militarismo, à masculinidade, à teologia do domínio e à violência nua e crua como expediente ideológico fundante. Em suma, reconhecendo os tempos difíceis, o bolsonarismo se ancora na máxima “farinha pouca, meu pirão primeiro” produzindo um movimento de terra arrasada, em que o genocídio está sempre à espreita, quando não é defendido abertamente.

“E daí?”

E daí que diante dessa política radioativa, com tamanho poder destrutivo, é prudente se perguntar que erro as forças democrático-populares não deveriam cometer de jeito nenhum? Justamente o erro subestimar os riscos e lidar com essa força política como se fosse outra qualquer, porque não é. Significa dizer que fórmulas tradicionais, acordos institucionais, apostas conhecidas e movimentações de baixa intensidade são um convite ao erro, e o erro, nesse caso, pode ser fatal.

Mais ou menos como os muitos que achavam que Bolsonaro não representava risco algum em 2018 por não ter estrutura partidária, alianças políticas ou tempo de TV.

Ou aqueles que, uma vez Bolsonaro eleito, apostavam que seu potencial destrutivo seria blindado, sem maiores dificuldades, por ação das instituições.

Ou ainda os que, dado o fracasso do seu governo consideravam-no sem chances de sequer disputar o segundo turno de 2022.

Para não falar dos que, diante do seu abatimento pós-eleitoral, deram-no por politicamente morto, ironizando sua fuga covarde para não passar a faixa presidencial.

Foram mais ou menos os mesmo que consideravam o golpe devaneio e, pós-inelegibilidade, correram para tratar Bolsonaro como um morto insepulto, carta fora do baralho ou, pior, uma âncora a afundar candidaturas país a fora.

Provavelmente foram muitos desses que avaliavam que sua manifestação política de autodefesa seria um retumbante fracasso, julgando prudente ignorá-la.

Os mesmos, aliás, que agora, reputam inofensiva, quando não, patética, sua proposta de anistia, minimizando a importância de intensificar a mobilização popular e apostando tudo no aprofundamento da tática hiperinstitucional adotada até aqui, na qual cabe apenas ao Estado, em especial ao judiciário, lidar com o problema da política radioativa do neofascismo.

A esses, gostaria de lembrar a imagem dos bombeiros de Chernobyl que abre este texto: se lidarmos com o bolsonarismo como uma força política como outra qualquer, é provável que em breve, estejamos todos mortos.

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