Francisco Júnior(1) e Nayara Oliveira(2)
A Reforma Sanitária que produziu o Sistema Único de Saúde (SUS) foi pensada, elaborada e construída basicamente por quadros técnicos e políticos vinculados formalmente ou simpatizantes dos partidos populares de esquerda no Brasil.
Na época da conquista do SUS na Constituição Federal de 1988 e sua posterior regulamentação, a maioria daqueles quadros integravam as fileiras dos Partidos de esquerda, particularmente o Partido dos Trabalhadores.
Nos anos 1990, o Brasil e o SUS passaram a sofrer as agruras dos governos neoliberais de Fernando Collor e de Fernando Henrique Cardoso. Num ambiente de desregulamentação e privatização, a “reforma do Estado” de Bresser Pereira impulsionou as terceirizações da força de trabalho, da rede de serviços, da gerência e gestão do SUS. Surgiram então as Organizações Sociais, as OSCIPs, as cooperativas médicas e a total precarização na contratação e remuneração dos servidores.
O SUS estava sendo destruído por dentro. Neste contexto, a defesa e a retomada do processo de reconstrução do SUS, com o atendimento universal e integral da saúde e o exercício da democracia participativa de forma plena como seus grandes eixos estruturantes, dependiam em grande medida do PT vencer as eleições para prefeituras, governos estaduais e a presidência da República.
A distância entre discurso e prática também aparece nos governos petistas
Entretanto, o que assistimos – entre 1988 e 2024 – foi um processo muito contraditório. À medida em que fomos conquistando governos municipais e estaduais, até chegar no governo federal, conseguimos vitórias importantes na defesa do SUS. Mas, ao mesmo tempo, começamos a assistir governos encabeçados por petistas conciliarem com políticas que destroem o SUS. Quatro exemplos disso: a aprovação da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH) no final do 2º governo Lula; a abertura da saúde ao capital estrangeiro durante o governo Dilma; e as até então inéditas parcerias público-privadas no SUS adotadas pelo governo petista da Bahia, que radicalizou na privatização do Sistema em praticamente toda a sua rede, através da adoção das famigeradas Organizações Sociais; o desrespeito às deliberações das conferências e dos Conselhos de Saúde, em muitos governos liderados pelo nosso Partido dos Trabalhadores.
A desconstrução conceitual e a privatização do SUS fere de morte não apenas o SUS, mas também os princípios que devem nortear nosso Partido.
A privatização assalta o SUS também no Piauí
Um quinto exemplo é o que está ocorrendo, agora, no Piauí: depois de privatizar cinco grandes hospitais, desobedecendo as deliberações das conferências de saúde, do Conselho Estadual de Saúde e do próprio Setorial Nacional de Saúde do Partido, o governo estadual encabeçado pelo nosso Partido, sem abrir qualquer possibilidade de diálogo, deflagrou um “golpe final” através do processo de privatização de outros 21 serviços e hospitais em todo o estado.
Diante da péssima repercussão desta medida, num momento eleitoral, com a oposição capitalizando a seu favor o desgaste político, o governo do Piauí tornou sem efeito as Portarias que, publicadas no dia 30 de setembro de 2024, criavam as comissões para organizar a entrega dos 21 serviços a empresas privadas. Esse recuo do governo estadual está sendo interpretado como um mero movimento tático para evitar prejuízos eleitorais no próximo domingo 6 de outubro. Se for isso mesmo, a privatização voltará com toda força após as eleições.
O financiamento do SUS é derrotado pelo déficit zero
Uma pauta permanente do movimento social e particularmente dos petistas da Saúde, é a defesa de um financiamento suficiente e adequado para tornar o SUS de fato universal, integral e resolutivo.
Fortemente atingido por um histórico e crônico subfinanciamento, a nossa luta tem sido pela superação desses limites orçamentários, contra os sucessivos cortes efetuados pelos governos conservadores e, também, pela mudança da sua equivocada e insustentável lógica de pagamentos por procedimentos realizados, que estimula a fraude, a corrupção, a mercantilização e a privatização.
Pois bem: nessa questão, temos sofrido no governo Lula 3 golpes inaceitáveis desferidos pela equipe econômica de Haddad e Tebet. O mais recente golpe é o anunciado corte de R$ 4,5 bilhões num orçamento que já é total e absolutamente insuficiente para a saúde. Tudo feito em nome do chamado ajuste fiscal, com o objetivo de cumprir as regras impostas pelo arcabouço fiscal e o “déficit zero” propostos pelo próprio governo.
Autoritarismo versus democracia
O certo é que vários de nossos governos estão repetindo práticas cometidas pelos governos conservadores na condução dos destinos do Estado brasileiro.
Às vésperas do primeiro turno das eleições municipais de 2024, numa correlação de forças muito difícil – com exceções, uma delas a capital do Piauí – enfrentamos esses dois citados ataques ao SUS, provenientes justamente de governos liderados pelo PT: a privatização no Piauí e os cortes orçamentários no plano federal.
Nosso Partido, a começar por sua direção nacional, precisa reagir. Já passou da hora do nosso Partido e dos nossos governos retornarem ao leito dos princípios e dos conceitos que nortearam sua fundação e consolidação no cenário político brasileiro, graças sobretudo a uma militância aguerrida e comprometida que nunca mediu esforços em sua defesa e que agora se sente desrespeitada e em certa medida traída em seus valores fundamentais pautados na democracia e na participação qualificada e diferenciada. Nos dois casos que citamos, não podemos dizer que a culpa pelos problemas que enfrentamos é do Centrão.
Os erros cometidos precisam ser reconhecidos e as práticas alteradas. E para isso é preciso, para começo de conversa, que as pessoas que estão à frente das decisões citadas aceitam debater, reconheçam os problemas, se disponham a mudar de rumos.
- Farmacêutico do SUS no Rio Grande do Norte, Membro do Setorial Nacional de Saúde do PT, ex-presidente do Conselho Nacional de Saúde
- Educadora Popular em Saúde aposentada do SUS em Campinas/SP, militante do Movimento Popular de Saúde (MOPS) de Campinas, ex-presidenta do Conselho Municipal de Saúde de Campinas e membra dos Setoriais de Saúde Nacional e Estadual do PT.