A Intentona Golpista do dia 8 de janeiro não pode ser vista como um fato isolado. Ela foi a demonstração de como a questão militar é essencial para a luta democrática. Está no centro da conjuntura política da crise, pois não tivemos uma transição, mas sim uma continuação até a troca do Comando do Exército após a posse do presidente Lula.
E por que isso acontece? Porque as Forças Armadas expressam uma posição conservadora e autoritária na relação com as instituições do Estado Democrático; com os movimentos sociais; com a esquerda e no enfrentamento da própria crise. Elas foram a força de sustentação do governo Bolsonaro nos seus principais momentos de crise, tanto durante a epidemia da Covid 19, como nas outras duas tentativas de golpe – nos dias 7 de setembro de 2021 e 7 de setembro de 2022.
A partir do dia 31 de outubro passado os acampamentos montados em frente aos quartéis se transformaram numa incubadora de proto-fascistas e foram peça essencial para os acontecimentos do dia 8 de janeiro. As Forças Armadas contribuíram com a articulação, a infraestrutura e a cobertura até do ponto de vista logístico e de inteligência. Finalmente, na relação com o novo governo elas estabeleceram o modelo da tutela militar e da autonomia. O ministro da Defesa sugerido por elas foi aceito pelo governo, assim como a indicação dos comandantes das três Armas pelo critério da antiguidade.
Esse contexto histórico exige uma transição e não uma continuação. Para haver uma transição, antes de tudo, tem que ser reafirmada a soberania do Poder Civil sobre a Instituição Militar. Isto implica em assegurar que o presidente da República eleito pelo povo seja o comandante supremo. Os comandantes das três Armas têm que ser indicados deixando evidente a renúncia à tese e ao mito do poder moderador.
É necessário abrir uma discussão a respeito do papel das Forças Armadas. Temos que iniciar um debate com representantes da sociedade civil, dos partidos e do Congresso sobre a Política de Defesa, que não pode ser assunto só de militares. A Política de Defesa é uma política pública e é a partir dela que podem ser definidas reformas importantes na instituição militar.
É urgente derrotar a ideia de que as Forças Armadas sempre desempenham um protagonismo tutelar nos momentos de crise e de proteção do Brasil. Foi assim com Juscelino, com Getúlio Vargas, em 1964, foi assim na transição e na aprovação da Constituição de 1988. Essa farsa não pode se repetir no governo que foi eleito para reconstruir e transformar o país.
Uma das consequências dessa postura é que as Forças Armadas não estão enfrentando as questões da Defesa Nacional propriamente dita.
E o que consiste em discutir uma política de Defesa Nacional? Destaco cinco aspectos:
- a qualidade de vida, o respeito, o bem-estar do povo brasileiro.
- o acesso à tecnologia sensível, de acordo com as novas exigências geopolíticas do mundo.
- a vinculação da indústria de defesa com a recuperação da industrialização no país.
- pactuar com os países vizinhos uma política de cooperação, baseada na cooperação entre nós e na dissuasão para fora da UNASUL e CELAC.
- nas questões orçamentárias, de pessoal e de organização do território brasileiro as Forças Armadas têm que estar subordinadas ao poder do Presidente da República, às instituições do Congresso Nacional e, evidentemente, é necessário abrir um debate sobre critérios e parâmetros para a formação e uma doutrina militar democrática e atualizada das Forças Armadas. É necessário romper o espírito de casta e de corporativismo militar seja nas aposentadorias ou nos privilégios orçamentários, deixando claro que a Defesa Nacional é uma política pública.
O Brasil tem que definir que a principal missão das Forças Armadas é uma política de defesa dissuasória para enfrentar possíveis agressões externas. Essa política dissuasória tem que ser centrada na defesa nacional e externa. É preciso romper definitivamente com o conceito de inimigo interno e de militarização da segurança pública.
A desmilitarização do Estado é outro elemento importante, por isso defendemos a PEC da Quarentena. Isso é, militares, policiais, juízes e promotores têm que cumprir um período de quarentena ao mudarem de carreira. Porque hoje há uma verdadeira dança das cadeiras. Eles saem da carreira de Estado para a carreira política e da política para a carreira de Estado. É só ver a quantidade de militares, juízes, delegados e promotores nos cargos legislativos e em cargos de governo.
Esses são alguns pontos que exigem nosso compromisso, com base nas conclusões da Comissão Nacional da Verdade:
1. Que o Estado brasileiro realize uma reparação pública da violência contra a população, contra os direitos humanos e a denúncia das torturas.
2. Que as Forças Armadas, junto com o Poder Executivo, se apresentem de maneira revisionista em relação às narrativas impostas pelo pensamento da Guerra Fria, da guerra interna e do inimigo interno.
3. Abrir um grande debate na sociedade sobre parâmetros e objetivos de uma política de Defesa Nacional, através das Universidades, institutos, instituições militares, instituições do Poder Legislativo, Fundações de partidos. Esse caminho pode desaguar em uma Conferência sobre a Defesa Nacional. O país não pode mais deixar no porão a questão da defesa nacional e o papel das forças armadas.