Entrevista que integra o livro “Revolução brasileira”, de Isabel Mansur, concedida antes das eleições de 2022.
1. Qual a importância do conceito de estratégia para a esquerda?
A dinâmica do capitalismo contém três desdobramentos possíveis: a reprodução do próprio capitalismo; a destruição da natureza, incluindo a humanidade; e a superação do capitalismo por outro modo de produção. Este terceiro desdobramento depende, no médio prazo, de condições objetivas desenvolvidas pelo próprio capitalismo, como a ampliação da produtividade do trabalho e a coletivização do processo de produção. Mas, no curto prazo, a superação do capitalismo depende de a classe trabalhadora conduzir uma transição em direção ao comunismo. Neste sentido, diferente de outras transições de modo de produção ocorridas na história, a transição do capitalismo ao comunismo exige ação organizada a partir de um plano. A “estratégia” é exatamente isso: plano e ação. Na ausência deste plano e da ação correspondente, na ausência de uma estratégia, o mais provável é que prevaleçam a reprodução do capitalismo e a destruição da natureza e da própria humanidade. Portanto, para a esquerda anticapitalista, estratégia é condição sine qua non. Para a outra esquerda, estratégia é como hipocrisia: uma ilha grega.
2. Como definiria a estratégia democrático-nacional do PCB – hegemônica na esquerda brasileira dos anos 50 até a redemocratização?
A estratégia hegemônica no interior do Partido Comunista desde os anos 1920 até os anos 1970, mas também hegemônica no mesmo período em outras organizações comunistas e socialistas brasileiras, partia do seguinte pressuposto: antes do socialismo, o Brasil precisava desenvolver o capitalismo. Esta estratégia partia de dois pressupostos válidos. O primeiro pressuposto: a formação econômico-social brasileira continha diversos elementos pré-capitalistas. O segundo pressuposto: o desenvolvimento capitalista cria várias das condições necessárias para o socialismo. Mas destes pressupostos era possível, a luz da experiência russa e chinesa, extrair outra conclusão: no século 20 e num país periférico, a superação dos componentes pré-capitalistas e até mesmo certo nível de desenvolvimento capitalista só poderiam ocorrer nos marcos de uma transição socialista. Mas não foi esta a conclusão adotada. Pelo contrário, a estratégia realmente implementada pela maior parte do movimento comunista no Brasil foi em favor do desenvolvimento de um capitalismo com altos níveis de soberania, liberdade e bem-estar social.
3. Qual é o balanço que você faz dessa estratégia?
É preciso diferenciar a luta travada por amplos setores da classe trabalhadora, com destaque para as diferentes organizações comunistas e socialistas, da estratégia que presidiu esta luta. A luta foi heroica e podemos nos orgulhar. A estratégia foi equivocada, contribuindo na melhor das hipóteses para reduzir os níveis de exploração do capitalismo, mas contribuindo menos do que poderia na luta pelo socialismo.
4. O PT assumiu o protagonismo da esquerda brasileira nos anos 80, o partido conseguiu elaborar uma estratégia sólida?
Nos anos 1980, especialmente no seu quinto encontro nacional realizado em 1987, o PT estava implementando na prática e começava a dar forma teórica para uma “estratégia democrático-popular articulada com o socialismo”. Mas os acontecimentos posteriores atropelaram este processo: a ofensiva neoliberal e a crise do socialismo soviético causaram retrocessos materiais e espirituais no Brasil, na classe trabalhadora, na esquerda e no PT. Uma das consequências disso foi a adoção, por parte de setores cada vez mais amplos do petismo, de uma variante prática e teórica da estratégia democrática-nacional, mais especificamente da plasmada na Declaração de Março de 1958. Apesar disso, o PT sobreviveu com muito mais força do que a esquerda jamais teve em épocas anteriores, demonstrando que uma estratégia equivocada do ponto de vista da luta pelo socialismo pode coexistir e até pode contribuir, durante algum tempo, com êxitos parciais importantíssimos.
5. O que foi a estratégia democrático-popular?
A estratégia democrática e popular formulada pelo PT na segunda metade dos anos 1980 tinha três pressupostos fundamentais: a burguesia como inimiga estratégica, a realização das tarefas democráticas nos marcos de uma transição socialista, a disputa eleitoral por governos como parte da luta revolucionária pelo poder. Posteriormente, sem nunca abandonar formal e oficialmente a estratégia democrático-popular articulada com o socialismo, setores crescentes do PT foram aderindo a outros pressupostos: a aliança estratégica com parte da burguesia, as tarefas democráticas como uma etapa distinta da socialista, a disputa eleitoral como sendo a luta pelo poder.
6. Como e em quais condições a estratégia democrático-popular foi elaborada?
As formulações do quinto encontro nacional do PT (1987) foram elaboradas através do “método confuso” típico de um partido de massas e com tendências internas. Numa reunião da tendência Articulação, uma comissão produziu um primeiro rascunho, depois submetido a crítica e reformulado, levado ao encontro nacional do PT e lá recebendo emendas, para finalmente ser interpretado e reinterpretado de diferentes maneiras. Mas a estratégia não é apenas uma formulação, é também uma conduta prática. E é nesse terreno que se deram as batalhas mais importantes, ao longo dos anos 1980 e ao longo dos anos 1990: do lado do capitalismo, a vitória do neoliberalismo, do imperialismo, do agronegócio e do setor financeiro; do lado da classe trabalhadora, várias derrotas políticas e materiais, combinadas ao crescente predomínio do eleitoralismo, do social-liberalismo e do velho jeito de fazer sindicalismo.
7. Em qual medida a estratégia democrático-popular foi realizada nos 13 anos do PT na Presidência da República?
Em nenhuma medida. A estratégia predominante no PT, desde 1995 e principalmente a partir de 2002, deixou de ser a estratégia democrático-popular articulada ao socialismo aprovada no quinto encontro nacional do PT. Embora várias resoluções continuassem falando de “estratégia democrático-popular”, tanto o conteúdo quanto a prática caminharam noutro sentido.
8. Nos 13 anos que o PT esteve à frente do governo, implementando o programa democrático-popular na sua prática de reformismo fraco, existiram alguns avanços? Quais foram? Quais foram os limites?
O programa implementado nos treze anos de governo não foi o “programa democrático popular” anti-latifundiário, anti-monopolista e anti-imperialista. E as reformas realizadas não foram “estruturais”, ou seja, não alteraram de maneira profunda a distribuição da propriedade, da riqueza e do poder. Prova disto, aliás, foi o golpe de 2016 e a rapidez com que o governo Temer e depois Bolsonaro implementaram suas políticas de “ponte para o passado”. Agora, apesar de não ter sido implementado o programa democrático-popular, houve avanços em favor da classe trabalhadora em diversos terrenos, embora limitados pelo fato de que o neoliberalismo continuava hegemônico ou, dito em outras palavras, o capital financeiro, o agronegócio, a mineração e as transnacionais continuavam determinando as variáveis fundamentais da sociedade brasileira. O principal limite, vale dizer, foi político: os governos de 2003 a 2016 nem ao menos tentaram desmontar os instrumentos de poder da classe dominante.
9. Em qual medida o PT repetiu os erros da estratégia democrático-nacional?
Do ponto de vista teórico, podemos dizer que a posição hegemônica no PT desde 1995 até 2022 adaptou progressivamente, aos tempos modernos, a estratégia proposta pela Declaração de Março de 1958. Mas há um limite neste tipo de comparação: são épocas históricas e organizações muito diferentes. Por exemplo: no papel a luta pelo socialismo era mais enfatizada em 1958 do que nas resoluções do PT, especialmente depois de 2002. Mas nada mais normal do que o radicalismo de uma organização minoritária. Já o PT teve e segue tendo muito mais força do que o PC teve. Portanto, a comparação pode ser feita, mas exige ponderação. Por outro lado, o PT teve a oportunidade de testar na prática a estratégia e comprovar seus limites, coisa que o PC não teve. A experiencia dos governos Lula e Dilma demonstrou até onde vai a “disposição reformista” e o “compromisso democrático” do grande empresariado, dos meios de comunicação, das igrejas conservadoras, dos setores médios, dos militares e do imperialismo.
10. A estratégia democrático-popular deve ser reelaborada ou superada?
A estratégia democrática e popular articulada ao socialismo, tal como formulada na segunda metade dos anos 1980 pelo PT, precisa ser retomada em suas premissas. O retrocesso vivido pelo Brasil nos empurrou de volta a problemas típicos dos anos 20 do século XX. Por exemplo: o Brasil precisa de reindustrialização. Isso exigirá algum tipo de capitalismo. Mas dada a posição da classe dominante brasileira e dada a posição do imperialismo, este tipo de desenvolvimento capitalista exigirá – caso se queira fazer reindustrialização junto com ampliação das liberdades, do bem-estar e da soberania – um governo de orientação socialista. Esta lógica – realizar as tarefas democráticas nos marcos de uma transição socialista – é o núcleo da estratégia democrática e popular. E esta lógica segue atual.
11. Num eventual governo Lula, é possível avançar num reformismo forte? Qual será o papel dos socialistas: repetir a tática de ocupar espaços institucionais ou investir na disputa do governo nas lutas de massa, na rua?
Não devemos subestimar o cavernícola: a extrema direita pode ganhar as eleições, assim como pode tentar um golpe antes ou depois do processo. Por outro lado, está em curso uma crise mundial cujas implicações podem subverter todos os planos. E, finalmente, há uma crise profunda no capitalismo brasileiro, como havia – guardadas as proporções – nos anos 1920. Tudo isso conduz à seguinte conclusão: não está dado o que será o governo Lula. O que está dado é o seguinte: para um eventual governo Lula contribuir para a conquista dos objetivos imediatos e históricos da classe trabalhadora, esta classe precisa se movimentar em todos os terrenos, nas chamadas instituições, nas lutas sociais e políticas de massa, na batalha cultural. Portanto, a tática da esquerda anticapitalista deve lançar mão de todas as formas de luta, sabendo que nossa força reside na presença capilarizada junto a classe trabalhadora, nas empresas, nos locais de moradia, de estudo e de lazer. E a esquerda anticapitalista precisa compreender, ademais, que no atual período histórico o êxito da luta pelo socialismo passa pelo PT, precisa incluir o PT. Não haverá êxito sem o PT, não haverá êxito contra o PT. Se houver êxito, será com o PT.
12. O socialismo ainda é uma alternativa concreta para a humanidade?
O mundo atual enfrenta problemas imensos, impossíveis de serem resolvidos – ao menos, em favor das maiorias – nos marcos do capitalismo. É isso que torna a transição socialista em direção ao comunismo uma necessidade. Se essa necessidade vai ou não se materializar, se vai ou não virar uma “alternativa concreta”, depende da luta de classes e da luta entre os Estados. Do seu jeito e com suas contradições, os chineses estão fazendo a sua parte. Precisamos fazer a nossa.